Cada vez mais presente na imprensa, nas redes sociais e na comunicação corporativa, a expressão “amazônidas” já foi alvo de polêmicas e ainda hoje chega a ser “corrigida” em alguns espaços.
Não, ao usá-la não nos referimos aos nascidos no estado do Amazonas (amazonenses), como destacam alguns dicionários ao explicar a significação do vocábulo.
Então, qual é o seu real significado?
A explicação exige um retrospecto para entender o que foi e continua sendo este imenso território nascido sob o signo da floresta e das águas.
Mesmo entre os milhões de nascidos nos Estados da Amazônia ainda há quem tenha pouca ou nenhuma identificação com o que é ser amazônida, achando estranha a expressão. A razão pode estar na fragmentação das nossas identidades a partir do favorecimento de identidades estaduais, onde a rivalidade é estimulada em detrimento dos vínculos históricos e culturais que nos unem.
Já percebemos mudança gradual e o uso da palavra se torna mais presente ultimamente em palestras, artigos, aulas e discussões quando a temática é a região.
É bom ressaltar que o uso da expressão “Amazônida” foi registrado internacionalmente pela primeira vez em 1990. Quem a usou foi o jornalista Lúcio Flávio Pinto, autor de mais de 20 livros sobre a região, editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Ele discursou em Paris, na sessão do Tribunal Permanente dos Povos (ex-tribunal Bertrand Russell) dedicada à Amazônia. O jornalista explicou que queria na época demarcar o cidadão amazônida em uma posição política e filosófica, distinguindo-o entre os que têm consciência sobre a região, sua condição colonial, exploração e, assim, não se torna omisso, e toma parte na luta política.
Lúcio Flávio conta que o uso da expressão causou reações imediatas. Incomodou por sugerir uma condição regional específica e foi criticado por pretensa exclusão da Amazônia de um Brasil “único e igual”.
Não somos iguais e nunca seremos.
Nossa trajetória histórica, dinâmicas sociais, políticas e econômicas são completamente diferentes. Vamos lembrar a separação política, no tempo em que o então Grão-Pará não era Brasil e seguimos como duas colônias diferentes por mais de dois séculos.
Nos configuramos nacional e internacionalmente sob a égide das exuberâncias estereotipadas e da condição continental da nossa região. Somos, sim, parte indissociável da natureza. E é imprescindível nos compreender em nosso território e ancestralidade, mesmo com as constantes investidas para tirar da gente os traços dos povos originários que nos construíram.
Como explica Lúcio Flávio, o ethos da Amazônia é ferido gravemente pelos ataques ao sistema de vida que soma aqui o “ciclo sol, água e floresta”. E somos também resultado de sincretismos e uma formação social marcada por escravismo e resistências, ausências e silêncios, semelhanças e ambiguidades.
Somos ribeirinhos, caboclos, indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, estudantes, professores, jornalistas, trabalhadores de toda ordem, enfim, somos sujeitos sociais da várzea e da terra firme, principalmente, somos singulares. Somos muitas Amazônias. Temos estilos, costumes e práticas culturais geracionalmente transmitidos, mesmo sem um reconhecimento político de nossas existências. Mesmo num processo progressivo de transformações, os estereótipos acabaram nos reduzindo a seres isolados no tempo e no espaço.
Como destaca Violeta Refkalefsky Loureiro, socióloga e pesquisadora, fomos submetidos a um projeto de séculos de inferiorização cultural e racial que subestima nossa complexidade. Mesmo assim, continuamos a reforçar nossas trocas simbólicas; mantivemos nossa cultura e tradições, e recusamos a moldura da civilização eurocêntrica.
Por isso, para compreender a Amazônia é preciso inicialmente reconhecer os grupos sociais que compõem nosso território. Entender nossa gente em gestos, sotaques, lutas e cotidianos, onde estão as manifestações e práticas culturais que nos orgulham. E também é perceber as contradições que constroem paisagens sociais bem diferentes da harmonia e romantismo que habitam o ideário sobre a Amazônia.
Aliás, hoje estamos no amanhã. É que a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-30) está prevista para ser em Belém no ano que vem, mas já chegou por aqui com seus desafios e expectativas.
Estamos esperando um mundo de gente para discutir o mundo aqui, experenciando nosso mundo.
Os olhares estarão voltados para cá e nós queremos ser olhados e ouvidos.
É o momento de tentar desconstruir a Amazônia que já foi inventada e reinventada várias vezes, abrindo espaço para nossas singularidades amazônidas que permanecem aqui – num intricado jogo de estereótipos e silenciamentos – tentando esvaziar as idealizações que nos impuseram e desafiando os que subestimam nossa complexidade.
Amazônidas, presentes!
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