29 de junho de 2021

Entrevista com VP do Carrefour: “Não adianta remar contra o tsunami”

Stéphane Engelhard, VP de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Comunicação do Grupo Carrefour Brasil, fala com exclusividade para o Portal Aberje sobre o ato de racismo que vitimou um cliente negro em novembro de 2020: como aquela tragédia vem impactando a comunicação da empresa
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Stéphane Engelhard, VP de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Comunicação do Grupo Carrefour Brasil, fala com exclusividade para o Portal Aberje sobre o ato de racismo que vitimou um cliente negro em novembro de 2020: como aquela tragédia vem impactando a comunicação da empresa

Stéphane Engelhard, vice-presidente de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Comunicação do Grupo Carrefour Brasil

O Grupo Carrefour tem há anos uma atuação contínua nas pautas de sustentabilidade e responsabilidade social. Desde rastreabilidade de produtos até estratégias de diversidade com vários grupos minorizados. Entretanto, a morte do cliente João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, por seguranças da empresa terceirizada dentro de uma loja em Porto Alegre, em novembro de 2020, provocou uma série de questionamentos dentro da empresa, em relação a processos, cultura e à forma de se comunicar.

Para além das práticas, a empresa entendeu a importância de influenciar mudanças positivas e necessárias na sociedade, especialmente quanto ao lado de movimentos sociais e de outras empresas que podem unir forças.

Sobre as iniciativas em relação à diversidade e inclusão – e ao tema ESG de forma ampla –, tomadas nos últimos dois anos, em meio à pandemia da covid-19, e também sobre gestão de crises, relacionamento com públicos e cultura organizacional, Stéphane Engelhard, vice-presidente de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Comunicação do Grupo Carrefour Brasil, conversa com exclusividade com a Aberje. “Os compromissos do grupo estão em um trabalho permanente de comunicação interna e externa”, afirma.

 

Quais são atribuições do senhor hoje no Grupo Carrefour?

Stéphane Engelhard: Sou responsável pela comunicação externa, desenvolvimento sustentável e responsabilidade social. Ou seja, um leque de atividades para se comunicar bem com o mundo externo e dentro de casa.

Há uma pessoa encarregada pela comunicação externa, Regina Maia, que trabalha com uma equipe e com assessoria de comunicação. Assim olho para fora da empresa e sei quais informações externas podem nos afetar diretamente. Se tem um incidente numa loja, por exemplo, há um relacionamento de responsabilidade com o poder público, consumidores e mais. Tudo isto impacta dentro de casa e por isso entendemos que faz sentido essa estrutura unificada no Brasil, onde as coisas são muito dinâmicas.

O modelo global é semelhante?

SE: No modelo global não é dessa forma. A comunicação na França tem um membro do comitê executivo dedicado exclusivamente à comunicação. Aqui optamos por agregar as funções também pela dinâmica local.

O ESG ganha força na empresa e impacta a agenda de comunicação?

SE: A agenda ESG é fundamental e ganhou muita força nos dois últimos anos. Durante a pandemia, especialmente. Até um tempo atrás, no final de 2017, a gente olhava para o desenvolvimento sustentável e responsabilidade social, mas entendeu que precisa de um foco ainda maior. Em 2018 lançamos o plano Carrefour 2022 com dois grandes pilares: a transição alimentar, que é como podemos ser líder no setor com produtos de qualidade e preço justo. E, em segundo, a digitalização. Com a pandemia, isso tudo se acelerou, pois temos um consumidor mais interessado, buscando informações sobre o que a gente faz, sobre a empresa e os produtos. Para todas essas perguntas temos de dar respostas.

Somos o primeiro comprador de carne no Brasil, um país com uma questão de desmatamento. O que podemos fazer, como varejista alimentar, para ter uma segurança de que não estamos comprando de fazendas de desmate, por exemplo?

Implantamos, em 2017, um prestador de serviço que faz geomonitoramento nas fazendas via satélite. A rastreabilidade é chave para assegurar a qualidade. Outro exemplo, como assegurar que não haverá problema de mão de obra escrava nos produtores de frutas e verduras?

Há uma série de melhorias para cadastrar o fornecedor e uma série de buscas para ter certeza que o fornecedor não está sujeito a esse tipo de trabalho.

São iniciativas como estas que foram aceleradas na pandemia. Além disso, com as pessoas passando mais tempo em casa há novamente um certo glamour com a questão da comida. O ritual das refeições em família, por exemplo, acelerou a busca por alimentos de qualidade.

Como a pandemia intensifica-se a comunicação das ações aos consumidores?

SE: A questão da comida foi puxada por uma preocupação com a qualidade, mas, ao mesmo tempo, o poder aquisitivo baixou. Fizemos uma aquisição de uma food tech, o Cybercook, que coleciona receita e se tornou uma ajuda para o consumidor entender melhor como comer bem e por um preço justo. Comunicamos muito sobre isso e temos mais de dois milhões de pessoas cadastradas nessa food tech.

No ano passado também fizemos campanhas de doações de alimentos. Foram 20 milhões de reais em cestas básicas doados no Brasil. Fizemos isto genuinamente e comunicamos bastante, inclusive nas lojas.

Como a diversidade e inclusão se encaixa nas ações de ESG?

SE: O Carrefour vem trabalhando há muito tempo a questão da diversidade e inclusão. Fomos reconhecidos nos últimos dez anos por boas práticas, mas no ano passado houve a tragédia [da morte de João Alberto Silveira Freitas] em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, na véspera do Dia da Consciência Negra e entre os dois turnos das eleições municipais.

Entendemos que muita coisa pensávamos fazer bem, mas não fazíamos tanto. Entendemos também que existe racismo estrutural no Brasil e que podemos ajudar a sociedade a mudar a partir de uma grande mobilização dentro da empresa. Primeiramente, fomos para a televisão com o nosso presidente, Noël Prioux, pedindo desculpas; investimos 40 milhões de reais na criação de um fundo de diversidade; e formamos um comitê com nove membros externos para elaborar um plano com oito compromissos, atualmente publicados no site Não Vamos Esquecer.

Primeiro, precisávamos resolver o problema da segurança e deixar claro que há uma tolerância zero com os fornecedores em relação ao racismo e outras desigualdades. Também foi percebida a necessidade de dar aos negros, 56% da população brasileira, as mesmas chances. No Carrefour eles são 54% no primeiro nível de hierarquia, pouco mais de 30% na gerência e apenas 21% na diretoria. Para mudar o cenário, várias iniciativas são necessárias, como a contratação de mais negros e pardos, um compromisso de contratar e ajudar empreendedores negros e mais. Assinamos um Termo de Ajuste de Conduta de 115 milhões de reais, fizemos acordos com os nove membros da família e temos um plano bastante robusto com todas as etapas comunicadas. Nunca fugimos ou tentamos esconder algo dos públicos, inclusive fomos questionados pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, pela Comissão Parlamentar de Diretos Humanos e não fugimos de nada. Estamos deixando claro que o compromisso não acabará daqui um ano. É importante pensar ainda que a rede social é um canal de comunicação incontornável. E que a imagem e a reputação de uma empresa podem sofrer muito nas redes sociais. Não importa se os questionamentos são justos ou injustos, eles precisam ser respondidos.

Como o compromisso antirracista é continuado?

SE: A luta contra o racismo hoje é assumida pelo presidente do Grupo e pelo comitê executivo. Temos também o comitê formado por nove membros externos, boa parte ativistas, com os quais dez dias depois do ocorrido já estávamos reunidos pela primeira vez. Foi, inicialmente, uma comunicação quase impossível porque não falávamos a mesma língua, mas se você forma um grupo é porque quer ouvi-lo. Estávamos muito abertos, mas ao mesmo tempo queríamos deixar claro que o comitê tem a função de propor ideias e iniciativas para mudar essa situação do racismo estrutural no Brasil.

Aos poucos teve uma convergência e o comitê entendeu que tinha um papel deliberativo e não executivo. Juntos conseguimos construir os oito compromissos. No início nos reunimos de duas a três vezes por semana; no começo deste semestre uma vez por semana, e agora a cada quinze dias. Sendo que este não é um assunto de apenas uma área da empresa, é um assunto do presidente e de toda a organização.

Quais as lições desse episódio?

SE: Se eu tivesse que dar uma recomendação para empresas, esta seria a criação de um comitê de diversidade. Nós pensávamos que estávamos bem, mas, revisitando os processos, e a forma de olhar a diversidade, não estava tão bem. Tem sempre algo a melhorar e quem está fora pode ajudar a aprimorar o olhar.

Na comunicação interna abordamos muito a diversidade, inclusive antes da tragédia. Depois intensificamos a preocupação da transparência também para fora. Por isso criamos o site Não Vamos Esquecer, agora disponível também em inglês.

Estamos sendo olhados por vários públicos, inclusive o de investidores, e esse site vai continuar. É importante lembrar também que no dia 28 de abril fizemos um fórum para mais de 16 mil fornecedores com dois propósitos: prestar contas e gerar engajamento para mudar a sociedade. O Carrefour não tem a pretensão de mudar 500 anos de história do Brasil sozinho. A ambição é de que com os parceiros e fornecedores possamos mudar essa ação.

De qual modo?

SE: Nos primeiros dias após a morte de João Alberto, por exemplo, fomos procurados pelas dez maiores empresas de consumo do Brasil para uma iniciativa muito boa. Elas nos questionaram e começaram a refletir como poderíamos mudar essa situação do racismo. Ali nasceu o Mover – Movimento Pela Equidade Racial. A ideia é como acelerar e movimentar mais para que a sociedade possa mudar. E as conversas são muito interessantes, com participação dos presidentes. O grupo tem um compromisso de contratar 10 mil pessoas negras ou pardas nas 46 empresas e gerar oportunidade para 3 milhões de pessoas.

Quais os desafios para o cumprimento das metas?

SE: O maior desafio é uma questão de cultura dentro das organizações. Um exemplo simples: a contratação de negros e pardos em posições chave da empresa. Honestamente, não é uma decisão da empresa de não contratar, mas não havia o reflexo de dizer “eu quero candidatos negros e pardos”. Hoje temos o reflexo de como podemos e o que devemos fazer para que, pelo menos, tenha essa população dentro do escopo.

Fomos claros ao dizer que queríamos também negros e pardos na contratação dos seguranças do Carrefour e contratamos um excelente candidato na chefia do setor, que já nos primeiros meses está sendo muito bom para a organização.

A mudança da cultura tem que ser top down e a alta cúpula da empresa precisa estar engajada. O ponto que erramos antes é que, na época, havia uma área que cuidava de diversidade e inclusão e pensávamos que isso era suficiente, porque a gente tinha ações, participava de fóruns, mas isso não estava conectado de fato com a vida real da empresa. O cenário mudou quando não se é uma área, mas sim a cúpula da empresa tratando dessa questão.

Como fica a cultura após a compra do Big?

SE: Primeiramente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ainda está fazendo o seu trabalho, e a compra não está aprovada. Temos hoje 100 mil colaboradores e serão mais 40 mil no Big, então criar uma cultura, se o Cade aprovar essa aquisição, é um desafio muito grande. Este trabalho começa pelos líderes. No Grupo Carrefour são 200 líderes que se reúnem frequentemente e abordam questões relevantes, como a tragédia em Porto Alegre. Há um trabalho de informar, sensibilizar e formar a liderança nas questões de diversidade e inclusão, e mais especificamente na luta contra o racismo.

Os compromissos do grupo estão em um trabalho permanente de comunicação interna e externa. A questão de como mudar já começou dentro da empresa e não vai ser diferente com o Big.

Quais as lições de comunicação de um momento de crise?

Temos 30 milhões de pessoas por mês em nossas. Há uma responsabilidade e um evento crítico não pode se tornar um caso isolado.

Pode-se ter muitas práticas e culturas mudadas, mas pessoas são pessoas. Nada justifica os problemas e as tragédias, mas estou dizendo que somos seres humanos e, por isso, frágeis. Com as crises, aprendemos muito.

Nas redes sociais, não adianta remar contra o tsunami. Claro que sempre se pode melhorar, e é fácil quando se está fora dizer que poderia ter sido feito isso ou aquilo. Na realidade, no momento da crise é preciso reagir rápido, ter sensibilidade e empatia, mostrar que está realmente engajado e dar soluções para a sociedade. Por exemplo, no caso da morte do cachorro na loja de Osasco [em dezembro de 2018], não estávamos capazes de nos comunicar de forma adequada nas redes sociais.

No caso de Porto Alegre, quando começamos a comunicar sobre o comitê fomos muito questionados, mas sempre nos posicionamos claramente. No fundo, hoje, acho que tivemos uma atuação razoável, tanto nas redes sociais como nas mídias tradicionais. Porém, qualquer polêmica que acontecer voltamos à estaca zero, e, por isso, a transformação cultural é fundamental.

Ainda na estratégia ESG há outras evoluções importantes a se comentar?

SE: Queria falar um pouco de sustentabilidade. Fizemos a adoção da reserva federal Lago do Cuniã, parque em Rondônia com 78 mil hectares, e fomos muito criticados por motivos errados. Fomos criticados por pactuar com o governo, e quero deixar claro que uma empresa como a nossa tem relações com todos os governos desde que chegamos ao Brasil. Inclusive fomos premiados na questão da diversidade pela então Ministra da Igualdade Racial no governo PT e somos apartidários.

Participamos da vida do país e a inciativa de adotar um parque se soma a uma série de iniciativas importantes, como o monitoramento das fazendas via satélite. Entendemos que temos um papel de ajudar os pequenos produtores e iniciamos há três anos um auxílio aos produtores de bezerros no Mato Grosso. Junto a uma ONG holandesa ajudamos pouco mais de 450 produtores de bezerros para não ampliar as áreas de desmatamento. Esses bezerros chegam na idade do abate com sucesso e sem custo adicional para produção. Assim mostramos e comprovamos que é possível melhorar a produtividade sem desmatar. Outro recado importante que quero deixar é a participação em fóruns. O que mudou nos dois últimos anos é que temos agora um diálogo com o poder público e com o terceiro setor.

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