Notícias falsas em tempos de coronavírus
Conteúdos falsos na área da Saúde devem ser amplamente debatidos e estar no radar de comunicadores, governantes e corporações, analisa Júlio César Meneghini, gerente de Conteúdos e Campanhas da Sonda Tecnologia
Por Aurora Ayres
“Se uma história é demasiadamente emocionante ou dramática, provavelmente não é real. A verdade é geralmente entediante”. A citação da jornalista ucraniana Olga Yurkova abre a dissertação de mestrado de Júlio César Meneghini, gerente de Conteúdos e Campanhas da Sonda Tecnologia. Intitulada “Emoções e afetos na desorganização informacional: o medo e a esperança em conteúdos falsos de saúde no whatsapp”, o estudo analisa os gatilhos emocionais que impulsionam o compartilhamento de conteúdos falsos via WhatsApp, com destaque para o projeto Saúde sem Fake News, do Ministério da Saúde.
Medo e esperança têm papéis centrais em um jogo que mexe com um assunto extremamente importante no cotidiano de milhões de pessoas, como a busca por informações e orientações sobre saúde. O problema, no meio disso tudo, é a desinformação, provocada pela enxurrada de informações que inunda o universo digital. Para se ter uma ideia, de 21 de janeiro a 21 de fevereiro deste ano, o órgão do Governo recebeu 9.900 mensagens para checar informações sobre o coronavírus. Dessas, apenas 495 eram verdadeiras, e 8.910 eram fake news.
Ao fundamentar o fenômeno da desinformação – processo em que a informação torna-se maior e mais dispersa e o conhecimento em si diminui –, a monografia destaca que a prática de adulteração de notícias não é de hoje. Táticas de manipulação de informações são datadas, pelo menos, desde o Império Romano. Ao longo da história, várias facetas da desinformação foram surgindo, conforme novos dispositivos de produção e de trocas de mensagens foram sendo introduzidos nas sociedades. A tecnologia atual só intensificou esse tipo de conduta, através de métodos inimagináveis à antiga civilização romana.
Hoje, esse movimento vem ganhando aliados cada vez mais estruturados no mundo digital. O maior deles são as fake news, que não atuam sozinhas, mas dentro de um complexo ecossistema de desorganização informacional. Nutridas pela emoção – reação a um estímulo ambiental inerente ao ser humano – as notícias falsas, e principalmente as referentes ao Covid-19 neste momento, concorrem lado a lado em termos de propagação.
Saúde sem fake news
O projeto ‘Saúde sem Fake News’ faz parte de um conjunto de ações estruturado pelo Ministério da Saúde para combater a desinformação nos temas de Saúde, um dos principais pilares temáticos a sofrer com o compartilhamento de conteúdos falsos e sem verificação.
Composto por uma campanha integrada de comunicação, com portal na internet, conteúdos para redes sociais e ações de comunicação no WhatsApp, o projeto surgiu como uma das consequência de um monitoramento anterior de notícias, conduzido pelo Ministério. Entre março e setembro de 2018, foram encontrados nas redes sociais 185 conteúdos referentes à Saúde, suspeitos de conter dados incorretos ou evidências científicas inexistentes. Cerca de 90% dos focos de mentiras identificados pelo órgão tinham como alvo a vacinação.
A primeira investigação do ‘Saúde sem Fake News’ destacou 81 conteúdos falsos compartilhados no WhatsApp entre agosto de 2018 e abril de 2019. Ao analisar essa amostra, Meneghini atesta que o medo e a esperança são as emoções mais reveladas nos conteúdos ressaltando que sempre foram fortemente acionadas por diversas estratégias de comunicação.
Aqui vale citar a Teoria dos Afetos, de Benedictus de Spinoza, destacada na dissertação: “Efetivamente, a esperança nada mais é do que uma alegria instável, surgida da imagem de uma coisa futura ou passada de cuja realização temos dúvida. O medo, por outro lado, é uma tristeza instável, surgida igualmente da imagem de uma coisa duvidosa. Se, desses afetos, excluímos a dúvida, a esperança torna-se segurança e o medo, desespero, quer dizer, uma alegria ou tristeza surgida da imagem de uma coisa que temíamos ou de uma coisa que esperávamos”.
Seguidas do medo e da esperança, de pólos opostos, desconfiança, aspiração e confiança são outras emoções esboçadas nos conteúdos falsos analisados pelo Ministério da Saúde. Registradas em escala bem menor aparecem admiração, tristeza e compaixão.
Meneghini conclui, em seu trabalho, que investir em modelos que capacitem analisar, distinguir e até mesmo quantificar emoções e afetos, pode ser um dos caminhos para avançar no combate aos atuais modelos de desinformação, com táticas cada vez mais velozes de espalhar conteúdos.
Redes sociais aceleram e fortalecem a era da pós-verdade
Noticiar, relatar e contar fatos passou a ser uma atividade feita por qualquer pessoa através das redes sociais e sistemas de trocas de mensagens instantâneas. Fica nítido, no estudo de Júlio César Meneghini, como o Facebook e o Twitter, além dos sites de busca, a exemplo do Google, aceleram e fortalecem a era da pós-verdade.
De acordo com as análises levantadas pelo autor, isso se deve por pelo menos dois motivos. O primeiro tem a ver com um incremento de velocidade, alcance, eficácia e escala. Vários levantamentos mostram que as notícias fraudulentas repercutem mais do que as verdadeiras. E mais rapidamente. Há também pesquisas que mostram que as fake news arrebatam as amplas massas de um modo acachapante, num grau jamais atingido pelos meios jornalísticos dito convencionais.
O segundo fator é o econômico. Notícias fraudulentas dão lucro (…) Como a mentira é fácil de produzir e desperta o furor das audiências, um dos melhores negócios da atualidade é noticiar acontecimentos que nunca aconteceram de verdade – e que, mesmo assim, despertam emoções fortes nos chamados internautas.
Ao unir a virulência do fator econômico à necessidade de despertar fortes emoções nos leitores e internautas, nasce um fator ao qual é necessário uma investigação detalhada. A presença das emoções nos conteúdos falsos pode nos ajudar a entender melhor a relação entre quem produz (emissor) e quem consome (receptor) os conteúdos falsos.
WhatsApp: o queridinho
A facilidade de compartilhamento de diversos tipos de mídia como imagens, áudios e vídeos de maneira instantânea, tornou o WhatsApp um aplicativo de comunicação instantânea extremamente popular. Estimativas apontam o uso do app por 1,5 bilhão de pessoas no mundo e mais de 120 milhões de pessoas no Brasil.
Meneghini ressalta que o app conta com duas características importantes na sua forma de comunicar: 1) suas mensagens atingem o receptor de forma individual, diferente de Facebook ou Twitter, que falam de forma ampla, como se fosse para um auditório. 2) todo o diálogo, suportado por texto, vídeo ou imagem, é criptografado de ponta a ponta. Ou seja, só o emissor e o destinatário podem ter acesso ao que é dito.
Também não é possível medir o impacto da distribuição de conteúdos via WhatsApp, como ocorre em outras redes sociais com métricas muito bem definidas e até segmentadas por público e região. Desta forma, o app virou um grande foco para a desinformação, muito pelo seu grande poder de capilaridade e certa característica de anonimato – o que pode ser determinante para que um conteúdo ganhe escala a partir da cadeia formada entre diversos usuários. A comunicação via WhatsApp tem características diferentes das feitas por Twitter e Facebook, duas importantes plataformas sociais bem definidas pela pesquisadora americana Yasodara Córdova: Facebook e Twitter são como uma via pública, uma praça, onde você abre uma banquinha e as pessoas podem te ver e interagir com você. Já o grupo de WhatsApp é como a sala de jantar da sua casa, não entra todo mundo.
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