25 de junho de 2020

Pastel de cacto

Tenho dois filhos muito enjoados para comer, até hoje. Em uma ocasião, eu e um dos meus filhos, então adolescente, resolvemos fazer uma viagem de aventura na Chapada Diamantina. Foram dias inteiros de caminhadas e noites dormindo como pedra, em pousadinhas de vilarejos. A viagem foi incrível e nos aproximou muito. Mas, como tudo tem um lado difícil, a alimentação era fora dos padrões, para dizer o mínimo. Naqueles vilarejos, no meio do nada, a comida era gostosa, mas forte, com ingredientes e sabores sertanejos. Comíamos carne seca, jerimum, macaxeira, jatobá, jaca. Até pastel de cacto provamos (eu gostei muito). Meu filho, a princípio, sofreu bastante, chegando a perder uns quilinhos, mas logo se encaixou no esquema e passou a devorar tudo o que lhe ofereciam. Nada como uma boa degustação para quebrar resistências!

A gente não pode dizer que não gosta de algo até que deguste seriamente. Vide o nosso isolamento forçado devido à pandemia da Covid-19. Coisas das quais fugimos a vida toda, num primeiro momento, começamos a engolir, para mais adiante gostar muito. Quantos de nós já tínhamos nos esquecido do prazer de almoçar com a família diariamente, de usar o tempo não gasto no trânsito para fazer a lição de casa com os filhos, de ter tempo para estudar, para ler e até para jogar papo fora com a esposa/marido. Trabalhar de pijama, fazer exercícios diariamente, reunir a família para, juntos, executar as tarefas domésticas e a limpeza da casa. Parece pastel de cacto, mas é bom.

O problema é que, passada a pandemia, o mundo nos chamará de volta à sua rotina de trânsitos congestionados, de refeições rápidas no restaurante a quilo, das infindáveis reuniões presenciais em salas lotadas, dos horários rígidos, etc. E aí, a pergunta que eu faço é: quem vai colocar o monstro de volta na caixa? Depois que a gente desfruta a liberdade e o poder de escolha, o “goela abaixo” começa a ficar difícil de se aceitar. Isso vale para os empresários, gestores e, também, para profissionais especializados. Estes últimos, particularmente, experimentaram o enorme aumento de produtividade, advindo do trabalho solitário e focado. Programadores, designers, contadores, produtores de conteúdo, entre várias categorias profissionais, terão grande dificuldade em voltar para a caixinha.

Enquanto passamos um trimestre nos queixando do isolamento, da saudade do happy hour, do restaurante, do cinema, colocamos no bolso uma série de vantagens e benefícios, proporcionados pelo isolamento social forçado, que agora, aproximado o momento do “retorno à normalidade”, começamos a enxergar as perdas. Quanto vale escolher um filme de arte, daqueles que a gente só conseguia assistir no circuito alternativo, em cinemas distantes e pouco confortáveis, e assisti-los em casa? Há aplicativos que possibilitam uma experiência semelhante.

E que tal encomendar refeições em restaurantes de todos os tipos, sem filas e a preços mais atrativos? E o happy hour de pijamas, por videoconferência, cada um bebendo e comendo o que lhe der na telha? E há aqueles que ainda podem se desligar de fininho da chamada de vídeo se o papo estiver chato. O mesmo para as reuniões intermináveis, para discutir o sexo dos anjos. Antes você tinha que ficar ali, quietinho, fingindo interesse, enquanto pensava no próximo jogo do Corinthians. Agora, se você não puder colaborar, ou se o assunto não for uma prioridade, você continua ali, de cara presente, mas trabalhando em seu computador nas prioridades reais de sua função. E por aí vai.

Está na cara que o mundo mudou… sem volta. Como vai ficar, exatamente, ainda não sabemos, mas o certo é que será diferente. Mais humano, mais racional, com prioridades reais e mais solidariedade. Tudo isso para dizer que as marcas devem saber fazer a leitura correta da situação para engajar seus colaboradores, parceiros e clientes. A tal história da marca cidadã deixou de ser balela para se tornar questão de sobrevivência. Saber entender e respeitar as necessidades de cada elo humano da cadeia produtiva, se torna essencial. Respeitar minorias e suas necessidades passa a ser mais do que apenas politicamente correto.

E a lanterna que vai iluminar todas essas tendências, dando pistas para as marcas se posicionarem, será a comunicação. Numa entrevista, após se recuperar da COVID-19, Nizan Guanaes nos deu algumas pistas: “Marca cidadã será aquela que aponta caminhos e cria esperanças. Para isso, a estratégia será mais importante do que a publicidade. Ser entendido será mais importante do que ser interessante”. O novo papel das agências será ajudar as marcas a se reinventarem, de forma mais transparente e mais utilitária do que jamais foram.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Augusto Pinto

Engenheiro de formação, Augusto tem mais de 30 anos atuando no mercado de TI. Iniciou a carreira na IBM, de onde saiu para se tornar um executivo bem sucedido na indústria de software. Foi o 1º presidente da SAP Brasil, onde atuou por sete anos, e também VP América Latina da Siebel Systems. Atua há mais de 15 anos em Comunicação Corporativa, como sócio fundador da RMA Comunicação. Em fevereiro de 2019, a RMA e RP1 uniram suas operações, criando uma nova empresa, a RPMA, empresa de comunicação integrada e projetos digitais. Hoje o Augusto faz co-gestão da RPMA, junto com a Claudia Rondon e Marcio Cavalieri, cuidando das áreas de Marketing Digital, Criação & Vídeo, RH estratégico e desenvolvimento da empresa a longo prazo.

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