Diálogo e consenso, mas sem fugir do conflito
Publicado originalmente na Valor Setorial edição 2021
Às vésperas de mais um ano eleitoral é sempre bom lembrar do papel decisivo dos comunicadores na construção de consensos de fundamental importância para a vida de uma sociedade democrática e próspera. Desta vez, no entanto, esse papel será ainda mais decisivo por dois motivos. Primeiro, porque, mesmo em meio aos ânimos acirrados e discursos radicalizados, é hora de valorizarmos mais uma cultura da divergência, aquela que de fato garante, por meio de rituais de diálogo, uma pluralidade genuína e civilizada, do que uma cultura do consenso de fachada, aquela que apenas varre os problemas para debaixo do tapete. Segundo, porque nunca como nos dias pós-pandêmicos de hoje os comunicadores de empresas e instituições tiveram uma oportunidade tão formidável de, por meio de uma participação ainda mais ativa no debate público, consolidarem o inegável empoderamento do qual foram instituídos no decorrer da crise da Covid-19. Empoderamento conquistado pela corajosa e bem executada missão de ajudar a colocar o poder dos negócios a serviço do combate do vírus e de mitigar suas consequências sociais deletérias. É bom lembrar também que “empoderamento”, essa palavra um tanto desajeitada, quer justamente se referir à ação social coletiva e inclusiva, e à capacidade de participar de debates que visam potencializar a conscientização sobre os direitos sociais e civis.
Cada vez mais assimilados pelas estruturas de governança e de estratégia das organizações, os comunicadores, mesmo antes da tragédia do novo coronavírus, já vinham fundamentando as bases desse seu novo papel. Hoje o comunicador deve ser um profissional dedicado à construção da excelência do propósito da organização, de sua marca e seus produtos, levando em consideração os impactos destes na sociedade e no planeta, ou seja, sua tarefa não se limita mais à simples comunicação laudatória de decisões que passavam ao largo de seu campo de atuação. Sempre se esperou muito do comunicador. Agora, se espera ainda mais. E isso é bom.
Parte fundamental da esfera pública, para usarmos expressão consagrada por Jürgen Habermas, a comunicação (aqui tomada em seus diversos campos e meios) pode e deve operar como contrapeso da radicalização. Por seu alcance e capacidade de analisar, informar e formar opinião, jornais, revistas, rádio e televisão, meios digitais e as áreas de comunicação das empresas devem constituir um amplo fórum, um ecossistema de conteúdo, em que a discussão possa nos levar a consonâncias, ao invés de meramente reproduzir dissonâncias. Alguns preceitos básicos do jornalismo, como o que insta o comunicador a ouvir os “dois lados da questão”, parecem indicativos, aliás, dessa vocação, que deveria ser estendida a todos nós, comunicadores. Por sua influência, tanto no ambiente da organização e da sociedade, empresas em geral, vale ressaltar, podem dar sua contribuição nesse processo. Não faltam bons exemplos de como campanhas e apoios de representantes do mundo coorporativo a determinadas iniciativas contribuem para avanços significativos da vida social, fomentando e estimulando ganhos civilizacionais. Ora, que outra causa mais comum e urgente as empresas têm para defender e apoiar senão a democracia e o seu vigor? Ademais, a política, em todos os sentidos do termo, está e estará cada vez mais presente no dia a dia das organizações. E os comunicadores também já assimilaram como esse fenômeno deve ser tratado: pelos princípios democráticos, jamais pela partidarização.
Proposições desse tipo podem, decerto, soar ingênuas. Mas não se trata aqui de ignorar que, em alguma medida, o conflito faz parte da vida em sociedade e sempre fará. Assim, vale o comunicador ter em mente que, desde o século XVI, aliás, quando a obra de Maquiavel inaugurou o pensamento político moderno, sabe-se que o tecido social é perpassado pela oposição de interesses, ideias e sentimentos, e não pela harmonia quase angelical entre classes e indivíduos imaginada pela filosofia da Idade Média. Todavia, esse diagnóstico realista não implica necessariamente em ver as divergências de interesse como luta fratricida que tem por objetivo a aniquilação do adversário. Autores do Iluminismo do século XVIII, como David Hume, bem o sabiam. Hume, apesar de ter assimilado a lição de Maquiavel, pensou a política como campo próprio para o manejo do conflito e, na impossibilidade de eliminar por completo a divergência, atribuiu às instituições sociais, jurídicas e políticas a função de reduzi-lo e estabilizá-lo. Não por acaso, esse filósofo foi um dos primeiros a atribuir importância central à imprensa nascente, como se pode ver no ensaio intitulado “Da liberdade de imprensa”.
Numa sociedade democrática, deve-se almejar que pluralidade, divergência e mesmo conflitos de interesses, em vez de constituírem solo fértil para o embate violento de opiniões, forneçam matrizes de acordos e soluções criativas para problemas de interesse comum. Essa meta, que podemos qualificar como civilizatória, só é realizável desde que se abra um espaço de debate racional e qualificado onde as diferenças possam ser confrontadas sem violência. Se não se deixarem contagiar pelo ambiente contencioso, os meios de comunicação e os comunicadores empresariais em geral são atores poderosos para a construção desse fórum destinado ao, como diria Kant, “uso público da razão” tão fundamental para a democracia.
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