Ricardo Sennes: “Apesar dos escândalos de corrupção, sociedade e instituições estão mais fortes”
Ricardo Sennes
Nas duas últimas décadas, a dinâmica de formulação de políticas públicas no Brasil sofreu mudanças notáveis, ocasionadas tanto pela sociedade civil, como pelos órgãos governamentais. Tem se tornado cada vez mais raras decisões relativas a marco regulatório ou desenho de política pública que ocorrem a portas fechadas e à base de corrupção. É claro que o país não está livre dessas práticas, mas o ambiente está menos favorável para que elas prosperem. Entre os fatores que concorrem para essa mudança no âmbito federal merecem destaque o fortalecimento dos Sistemas de Integridade, o crescente ativismo da classe média e o aumento da qualidade gestores públicos federais. Nos âmbitos estaduais e municipais esse processo é menos evidente.
Desde a constituição de 1988 iniciou-se a montagem do chamado Sistema de Integridade Nacional, cujo objetivo primordial é o de garantir crescente controle social sobre das ações do Estado. Os avanços mais visíveis para o público em geral são o fortalecimento dos Tribunais de Contas, das Controladorias Gerais nos níveis federal, estadual e municipal, dos Ministérios Públicos e o enorme aumento da capacidade investigativa Polícia Federal. Mas esses são apenas parte do um movimento mais amplo. Pesquisa divulgada pelo Instituto Ethos, em 2015, buscou compilar informações sobre a montagem desse sistema desde 2000, e indicou que, na verdade, sistemas iniciativas abrangem 10 campos distintos, tais como Poder Legislativo; Poder Judiciário; Ciclo Orçamentário; Contratação de Pessoal em Órgãos e Empresas Públicas; Contratação de Obras e Serviços; Sistema Eleitoral; Controle Interno, Externo e Social; Mídia; Sociedade Civil; e Ambiente de Negócios. Em todos eles, segundo esse relatório, ganhou-se transparência e formas de fiscalização.
O fortalecimento do Sistema de Integridade é orientado por dois processos principais. Do ponto de vista constitucional, a atuação desses órgãos vem ganhando mais respaldo e legitimação, apoiada por novas leis, como a de responsabilidade fiscal e anticorrupção, que potencializam e viabilizam a fiscalização. A chegada de uma nova geração composta por funcionários com mais qualificação e menos vinculados às estruturais tradicionais de poder é outro fator decisivo. Essa ruptura geracional é perceptível em particular na Polícia Federal, no Ministério Público e no poder Judiciário. Além disso, o investimento e o uso intensivo de tecnologia têm reforçado significativamente a capacidade de fiscalização e investigação desses órgãos.
Operações como a Lava-Jato só são possíveis nos dias de hoje, assim como outras tantas de mesmo teor, por conta do adensamento do sistema de integridade do país. Nesse sentido, essas elas são claramente resultado de melhoria do ambiente da gestão pública, e não o oposto, como alguns analistas tem afirmado.
Mas a dimensão de controle é apenas uma parte pequena desse processo. O mais relevante e com maior capacidade gerar iniciativas construtivas é a crescente qualificação dos quadros humanos nas agências públicas. Iniciada em 1999, descontinuada no governo Collor, mas retomada com vigor na gestão FHC, a criação de cargos de alta direção e gerência como carreiras transversais destinadas às funções de liderança de áreas e projetos especiais tem trazido resultados relevantes. Hoje são mais de 1.000 funcionários. A valorização da carreira e os salários iniciais de R$ 15.000 têm atraído quadros bem qualificados e estimulados, mudando de forma substancial os padrões de gestão pública. Em menor medida, o mesmo tem ocorrido nos governos estaduais – hoje 14 estados têm iniciativas desse gênero.
Iniciativas semelhantes estão, lentamente, mudando o perfil do poder legislativo federal. As carreiras especiais voltadas a estruturar as consultorias técnicas profissionalizadas – as chamadas consultorias legislativas – estão também atraindo quadros de alto nível. Com salários ainda mais altos do que o do poder executivo, seu quadro já faz a diferença para aqueles que querem de fato produzir iniciativas legislativas de qualidade e está, cada vez mais, integrado aos processos de tomada de decisão na Câmara e no Senado.
Por fim, a qualidade do processo decisório das políticas públicas também tem sido impactada pelo avanço do engajamento político das classes média, representado principalmente pela a atuação de ONGs, grupos de advocacy, redes de especialistas e entidades de pesquisa em políticas públicas. São grupos que atuam de maneira articulada com a mídia, possuem ótimos contatos com a burocracia pública, além de uma relação próxima com a academia, no Brasil e no exterior. Segundo pesquisa do IBGE, em 2010, havia 291 mil Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil) no Brasil, voltadas, predominantemente, para temas profissionais e sociais. As áreas de saúde, educação, pesquisa e assistência social (políticas governamentais) totalizavam 54,1 mil entidades (18,6%).
Mais do que mobilizar massas e convocar manifestações, a atuação política da classe média vem se tornando mais profissional, temática e voltada para influenciar marcos regulatórios e desenho de políticas públicas. O uso competente da tecnologia (redes sociais, big data, etc) favorece a sua atuação ao aproximá-los dos formuladores de políticas públicas.
Os escândalos de corrupção são mais consequência da mudança do poder da sociedade civil, dos órgãos de controle e de uma nova dinâmica política do que sinais de desmonte institucional do país. Mais uma vez, operações como a Lava-Jato – e outras que a precederam ou que irão sucedê-la – não seriam possíveis em um ambiente político e institucional dos anos 80. Mudanças estruturais na sociedade e no estado brasileiro estão em andamento, mas é preciso uma perspectiva de longo prazo para visualizá-las.
Ricardo Sennes é sócio diretor da Prospectiva e especialista em cenários políticos e econômicos, formulação e implementação de políticas públicas e avaliação de seus impactos nas empresas. Possui experiência em políticas industriais e de fomento e inserção internacional. É doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP. Atualmente é parceiro não residente do programa latino americano do Atlantic Council e membro do Conselho de Assuntos Estratégicos da FIESP e do Conselho da Revista Foreign Affairs (México e EUA).
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