08 de fevereiro de 2022

Uma coroa de flores e os desafios de compliance

Por mais que uma empresa tenha programas, sistemas e ações estruturados de integridade e compliance, há situações e momentos em que, além de normas e regras, são necessários temperos adicionais como razoabilidade, bom senso, empatia e sensibilidade na resolução de problemas.

O mundo progride continuamente, mas há questões no universo corporativo que nunca perdem a validade. Como, por exemplo: “o que pode” e “o que não pode” nas relações governamentais e institucionais? Como essas relações funcionam no dia a dia? Como administrar situações embaraçosas diante das regras de compliance? Como dizer não?

A evolução e a rápida transformação do ambiente de negócios, marcadas por crises, ameaças, escândalos, mas também por avanços, desenvolvimentos e inovações, vêm forçando as organizações a ampliar o foco da governança e a passar a olhar com mais atenção os assuntos relativos à integridade e à conformidade das operações e dos negócios.

Só que, por si só, programas e sistemas estruturados de integridade e compliance não são a panaceia de todos os males. Em várias situações, é indispensável acrescentar ingredientes valiosos como razoabilidade, bom senso, sensibilidade e leitura empática da conjuntura e de cenários.

Sem dúvida, integridade e compliance são cruciais!

Ao pé da letra, um programa de compliance visa garantir o cumprimento de leis, normas, regras e diretrizes internas de uma organização.

Estar em conformidade com as normas é um cenário ideal para qualquer empresa. Porém, somente cumprir regras não garante que a atuação de uma companhia seja necessariamente íntegra e ética.

Aí entra o programa de integridade, que foca em pontos como transparência, ética e confiança e implica em um grau mais efetivo e profundo de envolvimento de uma organização.

Dessa forma, essas duas pontas se complementam, gerando ações integradas de integridade e compliance. Por um lado, para cumprir o normativo é preciso ter integridade, ética e transparência. Por outro, para atuar com ética e integridade no ambiente corporativo também é preciso agir com base no respeito às normas, regras e legislações.

Mas isso é tudo?

A insignificância de uma discussão insignificante também traz consequências

No direito penal moderno, temos a figura do “princípio da insignificância”. Tecnicamente, significa descaracterizar um ato que, ao se  levar a lei ao pé da letra, seria compreendido como crime. No entanto, por ser algo de baixo valor ou de impacto insignificante, é destituído de sua tipicidade criminal, isentando o autor da ação de pena.

A priori, não é um princípio que está disposto em legislação específica. Portanto, é utilizado enquanto ferramenta do direito penal a partir da jurisprudência originada em torno de situações que se enquadrem no princípio.

Em agosto de 2021, um ministro do STF, aplicou o princípio da insignificância e absolveu uma mulher acusada de furtar um copo de requeijão. Na decisão, o ministro ponderou que a situação posta nos autos “chama a atenção pela absoluta irrazoabilidade de ter se movimentado todo o aparelho do Estado, Polícia e do Estado-Juiz para atribuir relevância à hipótese de furto de um simples copo de requeijão – estamos diante, na verdade, de uma aberração jurídica.”

Temos que trazer essa reflexão para o nosso dia a dia. É óbvio que, hoje em dia, atuar com integridade e compliance é, também, uma questão de sobrevivência empresarial. A sociedade está cada vez mais crítica e o mercado se adapta a isso. Na prática, o mercado não quer mais se relacionar com empresas que não seguem diretrizes consideradas éticas e corretas.

Os executivos estão vendo os programas de integridade e compliance, no contexto atual, como um investimento e não mais como um custo, integrando-os aos objetivos estratégicos das empresas. Esse direcionamento torna ainda mais importante uma governança eficaz dessas ações, com gestão de riscos proativa.

Contudo, tais programas não podem “engessar” o raciocínio e as atitudes. Mesmo que a organização tenha processos e estruturas de integridade e compliance robustos, se não houver diretrizes, conceitos e comportamentos que legitimem uma narrativa embasada em crenças e valores fortes, a companhia pode recair em erros ou deslizes, gerando discussões por vezes surreais e nada razoáveis.

A história a seguir ilustra isso.

Coroa de flores

Em determinado período, numa certa grande empresa, foi recebida a notícia que havia ocorrido o falecimento da avó de um importante interlocutor da companhia. Uma grande matriarca. Esse interlocutor, coincidentemente, era uma “PEP (pessoa exposta politicamente)(*)”, pois era prefeito de uma localidade. Por ser uma PEP, há uma série de cuidados envolvidos no relacionamento.

Querendo ser gentil e prestar solidariedade num momento doloroso e de perda com alguém que tinha um relacionamento importante com a empresa, o gerente regional da companhia decidiu mandar uma coroa de flores para a cerimônia de enterro.

No enterro, foram também enviadas outras coroas de flores, de outras empresas, familiares, amigos, etc. O que se quis, com essa atitude, foi mostrar que se estava solidário nesse momento difícil, de dor, independentemente da presença física ou não no funeral. A coroa buscava simbolizar isso, como se fosse um “abraço” da empresa com esse interlocutor, um carinho, num momento de desenlace que é muito desgastante.

Passado o evento, posteriormente, em auditoria na empresa, foi registrado que havia sido enviada uma coroa de flores para um parente de uma PEP. Pela auditoria efetuada, o envio dessa coroa de flores deveria ser enquadrado na política de brindes de companhia.

Como a coroa de flores foi caracterizada como brinde, foi classificada incialmente como sendo uma “não conformidade” no relatório de avaliação.

Isso criou uma situação um tanto quanto inusitada, com uma desgastante discussão de executivos da empresa, em uma reunião, sobre se essa coroa de flores teria ou não efeito de brinde e até possível valor financeiro, caso se constatasse que a coroa poderia ser revendida…

Uma cena tragicômica.

Em determinado momento da discussão, o CEO ponderou:

– “Sejamos razoáveis…É sério mesmo isso? Estamos aqui reunidos – o alto escalão da companhia – pra discutir esse tipo de situação?”

Final da história: o relatório de avaliação não foi considerado, porém, ficou a recomendação do registro correto do ocorrido e da necessidade de subir a alçada de decisão em situações imprevistas como essa.

O episódio demonstrou também, por vezes, a falta de flexibilidade que existe em processos predefinidos, predeterminados, para a análise de situações que fogem do previsto.

O que ficou desse acontecimento é que precisamos tomar decisões compartilhadas e evitar que somente a análise técnica acione o modo “robô” ao enquadrar um evento absolutamente eventual e efêmero em risco grave, colocando um simples envio de uma coroa de flores de solidariedade como sendo o envio de um brinde a uma PEP.

Os desafios do mundo corporativo se fazem presentes dia a dia e não podemos ter falta de sensibilidade, razoabilidade e bom senso para tratar um assunto como esse relatado na história somente com a letra literal da norma, mesmo que possa haver um possível enquadramento como “não conformidade”.

Falar em revenda da coroa de flores chega a ser cômico, uma zombaria, até pela insignificância do alcance.

Devemos ter o conhecimento e domínio da norma, o registro e memória do ocorrido, mas, principalmente a cabeça aberta para situações inusitadas.

Integridade e compliance sem olhar a história como um todo, sem texto e sem contexto, podem não funcionar completamente. Só seguir regras ou comportamentos predeterminados, ipsis litteris, nem sempre é a melhor solução em determinadas situações.

Veja, não estou dizendo que as regras devem ser descumpridas. Não se trata disso, em hipótese alguma. Ainda mais no atual ambiente empresarial, em que o ritmo das mudanças regulatórias e a convergência da regulamentação global, atrelados à concorrência de novas empresas, ao aumento da pressão dos stakeholders e ao rápido avanço tecnológico, criaram um ambiente extremamente complexo para todas as organizações.

Porém, não se pode ter integridade e compliance sem estar alinhado com os anseios da sociedade e sem ter processos de análise, avaliação e comunicação robustos. Tudo o que uma organização fala ou faz pode provocar controvérsias. É necessário que atributos como leitura de cenários, sensibilidade, empatia, razoabilidade e bom senso estejam também integrados ao cotidiano da companhia e sejam considerados nas análises das situações.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Carlos Parente

Graduado em Administração de Empresas pela UFBA, com MBA em Marketing pela FEA USP, possui um sólido histórico de experiência em Relações Institucionais & Governamentais, Comunicação Corporativa e Advocacy, com participações e lideranças em processos de comunicação estratégica, inclusive internacionais. Carlos Parente é sócio-diretor da Midfield Consulting.

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