Sim! Sou Preta!
Publicado originalmente no LinkedIn, em 20 de novembro de 2020.
Sim! Eu sou PRETA!
Durante anos, a ditadura de embranquecimento reinou na minha vida. Quando criança, eu olhava meu pai, Preto; e minha mãe miscigenada; e “desconfiava” que eu era Preta.
Digo “desconfiava” porque sempre que eu citava que era preta alguém vinha dizendo: “Que isso! Você é morena” ou “Preta? Não! Você tem a cor tão bonita, não diga isso”, ou, ainda: “Use seu cabelo liso que você fica melhor, mais arrumada”.
Então, cresci entendendo (e vivendo na pele) que eu não podia ser Preta, porque se eu fosse, era feio. “Preto é feio, é pobre, é ladrão, não tem futuro”.
Mas apesar desse “branqueamento” imposto como forma de “me proteger socialmente” eu vivia situações constrangedoras como o fato de ouvir de uma colega de trabalho quando eu tinha 17 anos, em meu primeiro estágio, que eu tinha um “cheiro de Preto”. E ela justificava: “Talvez porque seu pai é Preto”.
Ou quando uma pessoa me convidou para passar uns dias na casa de campo dela e, mesmo com quartos vazios, me colocou para dormir com as funcionárias da casa em um sótão.
Ou, ainda, quando em um evento empresarial, o anfitrião solta na roda de conversa em que eu estava: “Gente, vocês já viram Preto bem sucedido, em cargos de alto escalão? Não tem! Só vi até hoje o Ex-Ministro do STF, Joaquim Barbosa… porque o Pelé não conta, né?”.
E também quando em uma reunião que tinha agendado para um cliente da Pessoa. com um dos maiores executivos do país, no escritório dele localizado na cobertura de um dos prédios mais elegantes da Faria Lima. Durante a reunião ouvi o “então cliente”, que se dizia investidor de projetos populares para classe D, dizer: “Investir em varejo para a classe D vale a pena. Tem muita gente nesse mercado que compra perfume para ‘cheirar’ melhor e alisante para mudar o cabelo. Como a Erika. Olha só para ela”, disse, apontando para mim. Neste dia tive a sensação de uma escrava sendo vendida por seu “senhor de engenho”. Um objeto.
Eu, que não gosto de gerar polêmica e conflito, em 100% destas situações, engoli seco e recorri ao travesseiro para chorar sozinha. Algumas vezes por dúvidas sobre quem eu era, sobre minha identidade; outras pelas humilhações que me acertavam em cheio e chegavam a me fazer desacreditar de mim mesma.
“Preta?”, alguns ainda perguntam hoje, em 2020, quando o tema tem sido tão debatido e esclarecido – e não vou entrar aqui, neste momento, nos conceitos ou discussões importantes científicas, históricas e sociais. E nem em polêmicas!
Não! Esta é apenas a minha experiência. Minha vida. Minhas dores. Minha luta para superar, passar por cima, provar meu valor. Para os estudiosos deixo as teorias e, claro, a mim cabe o meu movimento e debates com a minha rede, clientes e amigos.
Estudiosos e ativistas que se aprofundam verdadeiramente no tema – na teoria e na prática – como Tabatha, Iaçanã, Andreza Reis, René Silva, João Diamante, Celso Athayde, Vitor Carpe, Osvaldo, Tiago Vinhal e minha irmã de alma, Vivi (apenas para citar alguns amigos bem próximos com quem, muitas vezes, compartilho meus desafios, tiro dúvidas e aprendo muito).
Sim! Sou Preta mesmo que isso incomode. Sou Preta como meu pai, que saiu da Bahia nos anos 50 e chegou em SP para buscar melhores condições de vida, começando sua carreira carregando as compras das “madames” na feira. Ele, Preto, conseguiu estudar, fazer faculdade de Engenharia Elétrica, ter seu próprio negócio.
Sou Preta como minha mãe de nariz redondo, pele colorida, boca grande e “carnuda”. (Mesmo que, por causa da cultura, do racismo estrutural do nosso país e da forma como ela foi criada, minha mãe se considere “morena clara, quase branca”).
Sim! Sou a Preta que nasceu na periferia. A Preta que estudou em escola pública até que minha mãe, trabalhando das 7h às 23h todos os dias, teve condições de me colocar numa escola particular do bairro para completar meus estudos.
Sou a Preta que, por ser filha da mãe solteira, era vista como “carne barata” pelos meus vizinhos que repetiam “essa aí não vai dar em nada”.
Sim! Também sou a Preta que pelo esforço de uma mulher guerreira, chegou à faculdade. Apesar de ser a mais nova de três irmãos, consegui este feito em casa. Sou a Preta que foi a primeira a conquistar o “direito” de ter um carro, que, de onde vim, e no milênio passado, era “coisa de branco”.
Sim! Sou a Preta de uma minoria que conseguiu empreender. A Preta que gera oportunidades para muitas outras pessoas. A Preta dona de uma agência de comunicação que começou do zero e que segue, depois de 15 anos, firme no mercado. A única agência que se intitula e assina no nome como empresa de Relações Públicas em MG (segundo o Conrerp 3ª região).
Sou a Preta que já foi convidada a ser coautora de um livro sobre jovens empreendedores brasileiros para contar minha história. A Preta com um MBA em Comunicação Internacional pela Syracuse University e Aberje. A Preta que, com muita gratidão, faz parte do estudo de uma mulher que admiro e que também é uma desbravadora deste mundo “embranquecido” e, em seu TCC, resolveu garimpar no mercado mulheres Pretas que empreendem na comunicação: a Andrezza Reis.
Ah! Preciso confessar: o cabelo alisado não consegui mudar. Infelizmente. Sabemos que há opressão aos traços negroides, mas também respeito minha liberdade e autonomia de ser como eu quiser. Ainda assim, consegui ensinar minha filha amar o cabelo crespo dela ao empoderá-la desde cedo! A amar sua origem. A ter orgulho de ser Preta.
Preta??? Alguns perguntam com mil interrogações. Sim! Sou Preta. E mesmo que alguns possam discordar, esbravejar, criticar: eu não ligo. Apenas me orgulho de ter a coragem de afirmar quem sou. Me orgulho de assumir minha identidade. Me orgulho das minhas origens. Dos meus ancestrais. Me orgulho de ser Preta e ser Pessoa. E ponto.
Que hoje, Dia da Consciência Negra, seja dia em que muitos Pretos embranquecidos pela cultura, escondidos em suas peles, muitas vezes por medo, tenham a coragem (e o direito) de assumir sua identidade e declarar, com orgulho: “Sim! Sou Preto/a/e!!!”
“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor da sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar” Nelson Mandela
“Eu tenho um sonho. O sonho de ver meus filhos julgados pela sua personalidade, não pela cor da sua pele” Martin Luther King
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