23 de maio de 2022

Relacionamento com a imprensa: tradição e ruptura

*Publicado originalmente no Anuário da Mega Brasil

É quase lugar-comum afirmar que, desde a “revolução digital” dos anos 1980-1990, instalou-se uma realidade que constitui, simultaneamente, um desafio e um amplo horizonte de possibilidades para a chamada imprensa tradicional. Desde o aparecimento dos primeiros blogs até os dias atuais – com seus podcasts, plataformas de vídeo e diversas modalidades de redes sociais –, a comunicação transformou-se, expandindo-se em escala imprevista e adquirindo feitios e características novos, cujos impactos ainda estão por ser inteiramente compreendidos e mensurados, mas já se fazem notar de diversas maneiras. Em razão desse processo de transformação, muito já se falou sobre um colapso da imprensa tradicional. E não foram poucos os especialistas que vaticinaram, por exemplo, a extinção do jornal impresso, o esvaziamento das grandes corporações de rádio e televisão, e outras tantas previsões apocalípticas para o jornalismo ao qual estávamos acostumados até os anos 1990. Essas possibilidades fizeram soar o alarme entre aqueles que consideram o jornalismo de qualidade uma conquista orientada para o bem comum, cujos rituais de produção foram forjados e testados em contextos históricos difíceis. Assegurar a expressão social dos inúmeros pontos de vista sobre os destinos das sociedades foi o alicerce para a construção e a preservação da democracia, destacadamente no Ocidente. A história e a memória desses mais de 300 anos de boas práticas é o que faz a maior parte da sociedade reconhecer a imprensa como uma instituição cuja existência é condição suprema para a existência da democracia.

Como se sabe, tais previsões catastróficas nunca se confirmaram inteiramente. No que concerne à atividade jornalística, é inegável que a disputa pela atenção do público tornou-se mais acirrada. Todavia, apesar das crises, a morte anunciada provou ser um mito. Felizmente, não só os jornais impressos continuam a existir, como passaram a veicular seu conteúdo na web e incorporaram recursos típicos das novas mídias, numa demonstração de sua capacidade de adaptação e de sua resiliência, desencadeando um processo que terminou por erodir as fronteiras entre mídia virtual e impressa. Algo semelhante, pode-se afirmar com segurança, ocorreu no que concerne às redes de rádio e televisão. Em todos esses casos, o jornalismo institucional estendeu-se ao domínio digital, aumentando seu alcance e adaptando-se.

Mesmo assim, não faltam dados que sinalizam um significativo realinhamento da importância atribuída, seja aos meios digitais, seja à imprensa tradicional. Em levantamento recente, a Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial) constatou que o investimento das empresas em comunicação tende, mais que nunca, a se concentrar nas novas mídias online e redes sociais. Indagadas acerca de 20 processos de comunicação diferentes, 83% das empresas consultadas responderam que em 2022 a preocupação com a gestão de meios digitais e redes sociais ocupa o 3º lugar de sua escala de prioridades, enquanto a gestão de relacionamento com a imprensa tradicional encontra-se apenas na 12ª posição. A considerarmos a série histórica das pesquisas de tendências da Aberje, o que mudou significativamente não foi a preocupação das empresas em relação aos meios digitais, mas a relevância concedida à própria imprensa. Entre 2015 e 2021, o relacionamento com os meios de comunicação tradicionais oscilou entre o 5º e o 6º lugares no levantamento, mas despencou seis posições na sondagem de 2022. Já as mídias digitais e redes sociais mantiveram-se sempre entre a 2ª e a 3ª posição. É verdade que não seria de todo equivocado pensar que a preocupação das empresas com os meios digitais não deixa de incluir a imprensa tradicional. Afinal, como já dissemos, as linhas de demarcação que separam as mídias online e o jornalismo tradicional não são hoje tão rígidas quanto já se supôs, e este último encontra-se também presente nas redes.

Seja como for, dados como esses suscitam algumas inquietações e cuidados. Em se tratando de estabelecer um canal eficiente de relacionamento com a sociedade, não há como negar a enorme relevância das novas mídias. Redes sociais, portais e outras plataformas têm uma penetração indiscutível junto às comunidades e permitem uma interação quase que direta e imediata com o público. Daí que esses meios constituam instrumentos poderosos para uma empresa ou marca que pretenda se dar a conhecer, divulgar seus produtos, promover uma ação de interesse social ou difundir seus valores e intervir no debate público. Mas seu emprego envolve riscos, derivados de algumas das características que lhes são peculiares, bem como do atual estado da arte da área, que ainda não conquistou a dádiva do reconhecimento institucional, advinda da confiança que a sociedade ainda não percebe nas informações produzidas pelas novas mídias.

Não é o caso de ir tão longe quanto Umberto Eco, quando o filósofo e romancista italiano declarou em entrevista que as redes sociais e canais similares haviam “dado voz a uma legião de imbecis”, mas é forçoso reconhecer alguns problemas. Em que pese o exagero desse autor, ninguém pode negar que as redes continuam a ser campo aberto para a dispersão de conteúdos suspeitos produzidos por veículos ou indivíduos destituídos de qualquer compromisso com os fatos ou com a informação de qualidade. O grande risco, como disse mais moderadamente Eco noutra ocasião, reside no fato de que as redes não possuem quase nenhum filtro, de que a seleção do que deve ser, ou não, levado a sério fica por conta do usuário e termina por depender de seus conhecimentos prévios. Ou pior, há um filtro obscuro, invisível ao escrutínio público, que são os algoritmos que regem as engrenagens das redes sociais e que interferem diretamente no cardápio de informação que é oferecido ao cidadão, considerado por parte dessas redes apenas como um usuário.

A questão parece ainda mais grave se considerarmos, além disso, que no ambiente virtual em geral todo tipo de notícias falsas possui amplo espectro de divulgação, malgrado todos os esforços já realizados no sentido de estabelecer uma legislação rigorosa, bem como de instituir de mecanismos de auditoria e monitoramento eficazes. Em qualquer busca que façamos pela internet, a dificuldade de realizar uma triagem adequada juntamente com o volume de informação faz com que tropecemos em boatos de toda sorte, em fake news e, no ponto mais extremo disso tudo, em discursos de ódio até nos depararmos com conteúdos produzidos por especialistas sérios e profissionais responsáveis. A sociedade e os seus representantes precisam trabalhar na construção de mecanismos institucionais que promovam a diferenciação entre as informações produzidas pela indústria da comunicação e das relações públicas das produzidas pela indústria das relações não-públicas.

Pode ser que a participação da imprensa tradicional no espaço virtual tenda a produzir consequências benignas capazes, com o tempo, de contrabalançar esses problemas. Por si sós, a ampliação da oferta de conteúdo qualidade na web, bem como alguma disseminação, no ambiente digital, do rigor no tratamento da informação característica do bom jornalismo tendem a fornecer contrapontos e produzir efeitos positivos capazes de auxiliar no estabelecimento de padrões de excelência mais elevados. Trata-se de uma aposta para o futuro. Pelo momento, o que é seguro afirmar é que o problema consiste no fato de que, se as mídias digitais facilitaram e ampliaram o acesso à informação, bem como multiplicaram os espaços de debate, elas também pulverizaram nossa capacidade de crítica e de checagem das informações – elementos que, aliás, são parte central das competências do jornalismo profissional.

É verdade que pesquisas recentes indicam que os meios de comunicação gozam hoje de menos credibilidade do que no passado. Um desses levantamentos, o Edelman Trust Barometer 2022, sugere que o descrédito pesa mais sobre a media, entendida em sentido mais geral, do que sobre a imprensa tradicional em particular. Segundo o Trust 2022, enquanto a imprensa é considerada confiável por 57% dos entrevistados apenas 37% depositam confiança nas informações obtidas pelas redes sociais. Essa diferença não chega a ser surpreendente, se levarmos em conta que, com a emergência desses novos meios, tornou-se possível a virtualmente todo cidadão dar ampla publicidade a suas opiniões, veicular suas narrativas e expressar suas ideias, independentemente de seu conhecimento a respeito da área, de suas fontes e etc.

É de se perguntar o que se ganha com essa novidade. O preço a pagar parece excessivamente caro. Com efeito, ele termina por consistir em abrir mão do trabalho de jornalistas formados para acompanhar e investigar sistematicamente os assuntos de interesse público, treinados no monitoramento metódico da atuação dos poderes e das lideranças políticas, na seleção de notícias mais importantes, em sua análise e apresentação na forma de narrativas compreensíveis ao maior público possível, sem descurar de checar a fidedignidade de suas fontes.

Dessas características, vale ressaltar, é que derivam a importância e a confiabilidade da informação veiculada pela imprensa tradicional. Pode-se dizer que o jornalismo, desde que realizado livremente e de acordo com as boas práticas consolidadas, não é apenas uma profissão, mas uma instituição necessária para a constituição de uma sociedade equilibrada. Não se trata aqui de romantizar esse ofício, mas, como já notava David Hume em termos característicos do século XVIII, cabe à imprensa livre instigar “o povo a frear a ambição da corte”, empregando toda “erudição e gênio” da nação em prol da liberdade, “mobilizando todos em sua defesa”. O que Hume parece ter percebido, com a sagacidade que lhe era peculiar, é que informar a população e contribuir para formar a opinião pública, sempre buscando fundamentos em argumentos sólidos, é uma função civilizadora da imprensa, pois impõe freios necessários ao poder e fixa obstáculos ao despotismo.

Se esse diagnóstico é acertado para a Grã-Bretanha do Século das Luzes, ele vale ainda mais quando se trata das democracias liberais de hoje em dia. Com efeito, não é excessivo afirmar que o debate público, sistemático e racional acerca de assuntos que são de interesse geral da sociedade é um elemento fundamental para o êxito desses regimes políticos. Como bem indicou o filósofo alemão Jürgen Habermas, em seu clássico Mudança estrutural da esfera pública, é por meio dessa prática que se pode chegar a consensos e regras racionais que possibilitem ordenar as relações sociais e o exercício do poder político de forma mais justa e civilizada. A democracia demanda necessariamente a existência e a manutenção desse espaço privilegiado de discussão, onde o direito à informação é garantido e a crítica livremente exercida. E o bom jornalismo, livre e independente, parece ser condição incontornável para sua existência e manutenção. O próprio Habermas, apesar de seu ácido diagnóstico acerca dos efeitos da comunicação de massas e das grandes corporações da área, foi um dos primeiros a ressaltar a importância que tiveram os jornais, ainda em meados do século XVII, na formação dessa esfera pública de debate.

Apesar do advento das novas mídias, esse estatuto parece permanecer inalterado. Dado seu padrão de excelência e a confiabilidade de que desfruta, assim como sua vocação histórica, a imprensa tradicional ainda parece ser o meio privilegiado por onde se dá a melhor comunicação entre os diversos atores que entram na composição de sociedades grandes e complexas, como é o caso da brasileira. Empresas e outras instituições (públicas ou privadas) que desejem dirigir-se à comunidade, seja para anunciar suas marcas, seus produtos e serviços, seja para dar sua contribuição na perseguição do interesse público, deixando claro seu compromisso com o valor da responsabilidade social, precisam alinhar a escolha dos meios de que lançarão mão para realizar esses objetivos. Em tempos conturbados, como os atuais, a opção a ser feita parece ser mais que clara: não é o caso de descurar das mídias digitais, mas convém, tendo em mente aquela boa e velha dialética entre tradição e ruptura, nunca esquecer da relevância da imprensa histórica, cujos valores clássicos desde já devem ser apontados contra aquilo que a nova ordem digital tem de perverso e autofágico.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

Hamilton dos Santos

Jornalista, mestre e doutor em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Também é formado em Administração de Empresas pela Stanford Global Business School. Tem experiência em diversas redações dos principais veículos de comunicação do Brasil e como diretor de Recursos Humanos da Editora Abril, onde trabalhou por 20 anos. Atualmente é diretor executivo da Aberje – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, representa a instituição na Global Alliance For Public Relations and Communication Management e é membro da Page Society, do Conselho da Poiésis e um dos líderes do movimento “Tem Mais Gente Lendo”.

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