Quando as folhas não são suficientes
Em algum momento, conta Gênesis, Eva e Adão perderam o que se chamava de ingenuidade ao acessar à malícia da existência. Podemos discutir no campo da crença se essa história é real, metafórica ou inexistente. Mas ela me instiga a pensar sobre exposição.
Eu me sinto altamente exposto, vejo as organizações e as entidades expostas. Não entro no mérito de quanto isso é uma oportunidade ou ameaça para os objetivos corporativos e até para a sociedade. Vejo “apenas” como um fato a ser encarado dentro desse modo de vida majoritariamente urbano, que o francês François Ascher, que debateu sobre o neourbanismo, chama atenção para as viventes faces de um isolamento associado à sociedade do textão. Que coisa não? Isolados, mas expostos?
A imagem figurada do casal original me parece o retrato dessa realidade. Lembro deles nus, ou quase, mas ao mesmo tempo isolados. Um mundo só para eles, mas expostos. Mas o que o isso tem a ver com os dias de hoje e os nossos desafios organizacionais como comunicadores?
A exposição (ou nudez) é a nossa realidade, potencializada hoje pela crise pandêmica, e o isolamento. Realidade imposta num mundo que se vende como globalizado e com aparente ausência de barreiras geográficas. Esse contexto nos leva a novas e perpétuas crises em razão da velocidade de mudanças do mundo VUCA. Alguns não cansam de chamar de “novo normal”.
Professor José Forni trouxe recentemente um debate sobre a necessária atenção sobre uma nova crise na crise, sustentado em artigo do norte americano Tim Scerba, que muito se aproxima dessa realidade que eu coloco. Eva e Adão escolheram se separar do seu criador e viveram sucessivas crises fruto das suas escolhas – certamente não tinham um plano de crise –, a primeira foi a descaracterização do mundo que viviam, em especial no seu governo e por consequência na realidade dele.
Estamos diante de uma crise sem precedentes. Óbvio! Dessa crise derivam sucessivas outras crises que são contingências da crise maior. Mas nem Forni, nem Scerba, se referiam a isso. Apontam, no entanto, à questão: e se surgirem uma nova crise enquanto essa crise persiste? Estamos preparados para gerenciar ou até preveni-la? A resposta, na minha ótica, é categoricamente um não, mesmo sem querer (e dever) generalizar essa realidade.
Afirmo isso porque entendo que já conseguimos absorver que teremos muitas crises a serem geridas ou evitadas e esses ciclos serão cada vez mais curtos. Contudo, isso não significa ter processos adequados de resposta e prevenção e uma cultura direcionada a enfrentar essa realidade.
Quando estudei a gestão de crise em um setor do nosso país, constatei que a maioria quase absoluta das empresas daquele nicho apresentava processos insuficientes, não exercitavam ou simulavam crises de forma periódica e constante, construíam documentos pró-forma e não se atentavam para questões nucleares do negócio como a marca, imagens e reputação.
As pessoas nas empresas compreendem seus negócios de forma profunda e possuem insumos necessários para concluir planos preventivos, contudo o tema, considerando o universo que estudei, não está na agenda dos CEOs, da Comunicação e das áreas nucleares.
Materializar o subjetivo e o inconsciente é um desafio, assim como compreender e estudar os potenciais cenários necessários para que dessa união de compreensões os processos existam e encontrem um solo fértil para transformações da cultura.
Enquanto isso, as folhas não são suficientes para cobrir a nudez e tão pouco a nudez inibe o isolamento. Devemos sim pensar e enfrentar a crise, e o que deriva da ação devastadora da Covid-19, gerando aprendizado com isso. E, mais do que isso, devemos refletir, mapear e se preparar para novas crises na crise ainda que aparentemente falte espaço nas nossas agendas para tantos webinars e encontros via Zoom. Assim, emprestando as palavras do especialista em inovação, Daniel Alvez, podemos ajudar construir “um novo melhor”.
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