12 de janeiro de 2023

“Pode repetir, por favor? Sou surda.” “Ah tá, ahã…”

Falta de informação, preconceito e vergonha ainda são principais causas para pessoas não buscarem uma qualidade de vida melhor

Desde que fiquei surda unilateral (perdi a audição do ouvido esquerdo), me deparo com situações inesperadas. Lembro que a primeira delas foi em Belo Horizonte na loja de aparelhos auditivos. Lá estava eu esperando ser atendida enquanto ouvia as fonoaudiólogas tentando convencer as pessoas a usarem o dispositivo. E, não, não era marketing. A falta de informação, preconceito e vergonha ainda são as principais causas para as pessoas não buscarem uma qualidade de vida melhor.

Toda vez que eu ia até a loja, acabava naturalmente participando das conversas. Até você aceitar a perda auditiva, testar os diversos modelos e se adaptar à prótese escolhida leva um tempo (semanas, às vezes meses, anos). Eu aproveitava cada ida minha para ajudar os profissionais de fonoaudiologia se eu visse algum sinal de preconceito. Afinal, qual a diferença entre usar óculos e um aparelho auditivo? O primeiro te ajuda a enxergar melhor e o outro a ouvir melhor. E era sempre essa pergunta que eu fazia àquelas pessoas que resistiam à tecnologia. Mas infelizmente, não é tão simples como pode parecer.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 10 milhões de brasileiros possuem algum grau de deficiência auditiva, o que equivale a 5% da população. Número no qual eu não acredito, deve ser bem maior. Segundo David Myers, investigador do Hope College dos EUA, as pessoas esperam, em média, 6 anos após os primeiros sinais de perda auditiva para tomarem uma medida. Nem precisamos ir tão longe, depois que comecei a falar publicamente sobre minha surdez unilateral -, inspirada pela Paula Pfeifer do SurdosqueOuvem, várias pessoas me contaram que não escutavam de um ouvido, ou tinham zumbido também, mas nunca tinham ido ver.

A surdez é uma deficiência que passa despercebida, é invisível. Mas não significa que não traga desafios no dia a dia. Antes de eu usar o aparelho, em uma reunião, por exemplo, com muitas pessoas falando ao mesmo tempo eu ficava tonta, os sons se misturavam com meu zumbido e essa sensação me fazia perder o sentido de direção. Outra dificuldade é não conseguir saber de onde vêm os sons. Passei subitamente de estéreo para mono.

Na prática, isso significa que: quando estou dirigindo não identifico se a ambulância está atrás de mim ou se está longe; não sei para onde ir se me chamam; prestar atenção em conferências e conversas telefônicas pode ser um desafio. Há situações tragicômicas, sobretudo, em eventos, parte do meu trabalho. Tenho que ficar virando o rosto e me aproximar da pessoa para ouvir por conta do ambiente ruidoso e muitas vezes, pela reação da pessoa, preciso explicar que: não estou querendo chegar mais perto, não estou dando em cima, ou nem virando o rosto porque a pessoa está com mau hálito (sim já me perguntaram isso), apenas eu tentando entender o que ela está dizendo.

Minha personalidade me ajuda e não tenho vergonha em dizer que sou surda unilateral. E olha que, ainda assim, muitas vezes dá preguiça em insistir e explicar, confesso. É justamente por isso que muitas pessoas desistem de manter contato e preferem se isolar. Aliás, lembro do meu otorrino comentar que o índice de pessoas surdas com depressão é alto.

Com o aparelho tudo isso melhorou muito, ao menos, para mim. Ele me ajudou a entender os que as pessoas estão falando e a me situar nos ambientes. Sem falar que é somente quando mostro o aparelho que muitas pessoas realmente repetem quando digo que não ouvi, mesmo já tendo pedido antes. Na primeira vez que peço, a reação geralmente é:

“Ah, tá é surda, ahã…” “Risos…”

Minha evidência da deficiência tem que ser sempre colocada à mostra. É ver para crer. A reação logo após eu mostrar a prótese vem com um peso de culpa: um olhar de dó.

“É que você não parece surda”, dizem.

A surdez é realmente invisível e não tem cara por isso não pareço surda, pareço a Fernanda. Porque somos muito mais que a nossa deficiência, nossa capacidade não está vinculada com alguma de nossas características. Não ter vergonha em falar é muito importante para que possamos normalizar a deficiência. Expor minhas vulnerabilidades não me fazem me sentir mais fraca, muito pelo contrário. Foi por meio da surdez que um mundo se abriu para mim. E que bom que a cada dia mais tem também se aberto ao mundo corporativo.

É preciso sim falar, é preciso normalizar a deficiência e desvincular da imagem que deficiência é um problema. Outro dia vi nas redes o Victor Di Marco dizendo:

“Eu possuo dificuldade na fala ou você possui dificuldade em me entender?”

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Fernanda Valente

Graduada em Comunicação Social, com especialização nas áreas de Gestão Empresarial e Comunicação Corporativa. Ao longo de mais de vinte anos, integrou empresas de grande porte como Tenaris, Usiminas e Samarco atuando para o fortalecimento da imagem das empresas com seus públicos de relacionamento, inclusive em contextos de crise. Acredita que a Comunicação pode ser ferramenta de mobilização e transformação social. Mãe da Ana Luiza e do Guilherme.

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