30 de outubro de 2023

O Círculo e a Roda: Simbologias e Complexidades das Rodas dos Expostos

Publicado também no Jornal da USP, em 14 de novembro

No cenário histórico da Europa pré-moderna, quando os recursos eram escassos e as normas sociais rígidas, surgiu uma prática singular e complexa que permanece até hoje como um símbolo poderoso: as Rodas dos Expostos. Essas estruturas, muitas vezes associadas a instituições da Misericórdia, eram locais onde bebês e crianças eram depositados anonimamente por pais que, por diversas razões, não podiam ou não queriam cuidar deles. A simbologia da roda nessas circunstâncias é repleta de nuances, representando tanto uma busca por amor e cuidado quanto o peso da moralidade e da exclusão. Uma roda de significados que chega até os nossos dias.

A Simbologia do Círculo na Roda dos Expostos

O formato circular da roda é, em si, uma representação poderosa. Independentemente da origem da mitologia, o círculo é frequentemente associado à perfeição e à eternidade, pois não tem começo nem fim. No contexto das Rodas dos Expostos, essa forma simboliza a continuidade da vida, a promessa de que mesmo quando os pais biológicos são desconhecidos, a criança tem o direito à existência e ao cuidado. É uma representação da esperança de uma vida melhor para essas crianças, apesar de sua entrada dolorosa, cruel, anônima no mundo.

A simbologia do círculo também pode ser interpretada como a ideia de que a criação e o cuidado de uma criança devem ser uma responsabilidade compartilhada por toda a comunidade, como sugerido pelo pensamento comunitário de origem africana: “Para cuidar de uma criança, é preciso toda uma aldeia.” Dentro dessa perspectiva, a roda não representa apenas a entrega marcada pela tristeza de uma criança a uma instituição, mas sim a aceitação de uma criança pela comunidade, que assume a responsabilidade por seu futuro e bem-estar.

No entanto, a simbologia da roda também carrega o fardo da ambiguidade. A ação de depositar uma criança em uma Roda dos Expostos é um ato carregado de complexidade moral e sofrimento. Os motivos podem variar de acordo com a situação individual, mas muitas vezes são motivados por dificuldades econômicas, pressões sociais ou limitações emocionais dos pais. Isso levanta questões profundas sobre a moralidade da sociedade e a capacidade de cuidar de seus membros mais vulneráveis.

O Amor Anônimo: Motivos e Consequências

Uma das motivações mais comoventes para o uso das Rodas dos Expostos era a incapacidade dos pais de criar seus filhos devido a dificuldades financeiras. Nessas circunstâncias, a roda representava um último ato de amor e desespero. Os pais acreditavam que, ao entregarem seus filhos a instituições que poderiam fornecer cuidados adequados, estavam dando a eles uma chance de sobrevivência e uma vida melhor do que eles próprios poderiam oferecer. Era, em certo sentido, um ato de sacrifício em nome do bem-estar da criança.

Este ato, que pode parecer desumano à primeira vista, muitas vezes era uma resposta à dura realidade da pobreza. Na ausência de sistemas de assistência social robustos, os pais eram confrontados com a escolha agonizante de ver seus filhos sofrerem de fome e privações ou entregá-los a instituições que, pelo menos em teoria, poderiam proporcionar cuidados adequados.

No entanto, a roda também simbolizava a carga da moralidade e da exclusão social. A sociedade da época frequentemente estigmatizava mães solteiras e crianças nascidas fora do casamento. A roda permitia que essas mães, muitas vezes em situações desesperadoras, ocultassem sua identidade e evitassem o julgamento público, mas ao mesmo tempo, isso contribuía para a perpetuação da vergonha associada à gravidez não matrimonial.

A moralidade era um dilema constante para as instituições que administravam as Rodas dos Expostos. Elas tinham que equilibrar a aceitação das crianças com a necessidade de evitar o incentivo à irresponsabilidade dos pais. A simbologia da roda, nesse contexto, reflete a tensão entre a compaixão e o julgamento, entre a vontade de cuidar das crianças e a condenação das circunstâncias que levaram à sua entrega.

Crianças com Deficiências: Uma Perspectiva de Esperança

Além disso, a simbologia da roda também está ligada à questão da deficiência. Muitos pais depositavam crianças com deficiências nas Rodas dos Expostos, incapazes de enfrentar os desafios adicionais que isso implicava. A roda representava, para eles, a esperança de que suas crianças pudessem receber os cuidados especializados de que precisavam, ao mesmo tempo em que evitavam o estigma social associado à deficiência.

Nesse sentido, a roda pode ser vista como um símbolo ambíguo de inclusão e exclusão. Por um lado, oferecia uma chance às crianças com deficiências de receber cuidados que seus pais não poderiam proporcionar, aumentando suas chances de sobrevivência e bem-estar. Por outro lado, ao aceitar apenas crianças “perfeitas”, a sociedade da época reforçava a ideia de que a deficiência era algo a ser ocultado e evitado.

O Depósito de Crianças e a Complexidade das Relações Familiares

Outra face dessa simbologia é a possibilidade de pais simplesmente depositarem uma criança porque não desejavam ou não podiam estabelecer vínculos com ela. Isso ilustra a complexa interação entre a maternidade, a paternidade e as expectativas sociais da época. A roda, nesses casos, representava uma saída para pais que se sentiam impotentes diante das demandas da parentalidade.

Aqui, novamente, a simbologia da roda em movimento nos estonteia e reflete as complexidades das relações familiares e das expectativas sociais. Ela nos faz questionar como as normas sociais moldam o conceito de família e parentalidade, e como as pessoas lidam com as pressões e desafios que surgem quando essas normas entram em conflito com suas próprias circunstâncias e desejos.

O cuidado comunitário da criança

O pensamento comunitário de origem africana que nos diz que, “Para cuidar de uma criança, é preciso toda uma aldeia,” ressoa profundamente no contexto das Rodas dos Expostos e da simbologia da roda. Este proverbio refere-se à ideia de que o cuidado e o bem-estar de uma criança não devem ser responsabilidade exclusiva dos pais, mas sim de toda a comunidade. Essa filosofia de cuidado coletivo pode ser aplicada de várias maneiras ao tema das Rodas dos Expostos.

Primeiramente, a prática das Rodas dos Expostos em si reflete essa filosofia. Quando os pais depositavam seus filhos nessas rodas, estavam confiando na comunidade e nas instituições para cuidar e proteger suas crianças. Eles estavam reconhecendo que, em suas circunstâncias específicas, não podiam fornecer o cuidado necessário e, portanto, estavam recorrendo à “aldeia” para garantir o futuro de suas crianças.

No entanto, a aplicação da lição africana também levanta questões críticas sobre o papel da sociedade e das instituições no cuidado das crianças. Quando as crianças eram depositadas nas Rodas dos Expostos, as instituições tinham a responsabilidade não apenas de garantir a sobrevivência física delas, mas também de criar um ambiente que promovesse seu desenvolvimento emocional e social. A “aldeia” precisava fornecer não apenas abrigo e comida, mas também amor, afeto e educação.

Nesse sentido, a prática das Rodas dos Expostos levanta questões sobre como a sociedade historicamente lidou com a responsabilidade coletiva de cuidar das crianças mais vulneráveis. Ela nos lembra que o cuidado de uma criança vai além das fronteiras da família nuclear e exige a participação ativa de toda a comunidade.

Hoje, à medida que grande parte da sociedade reconhece a importância do cuidado coletivo das crianças, o recado africano continua relevante. Ela nos lembra que o bem-estar das crianças é responsabilidade de todos nós e que devemos trabalhar juntos para criar um ambiente seguro e acolhedor para cada criança, independentemente de suas circunstâncias de nascimento. Isso significa não apenas prover recursos materiais, mas também garantir apoio emocional e oportunidades de desenvolvimento.

A parentalidade comunitária nos convida a repensar como concebemos a responsabilidade de cuidar das crianças e a nos esforçar para criar uma “aldeia” verdadeiramente inclusiva, onde cada criança tenha a oportunidade de crescer, prosperar e ser amada. É um lembrete poderoso de que o cuidado infantil é uma tarefa compartilhada por todos nós e que, juntos, podemos moldar um futuro mais brilhante para as gerações vindouras.

 

* Palestra proferida na manhã de 28 de outubro, na sede da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, por ocasião do lançamento do livro As crianças das Rodas dos Expostos: escritos do século XVIII ao XX, de Elizangela Dias.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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