30 de setembro de 2021

Em defesa da narrativa e do comunicador

Publicado originalmente no O Globo em 26/09/2021

Tornou-se lugar-comum empregar o termo “narrativa” como sinônimo de falseamento dos fatos. A palavra tem sido usada para indicar o contorcionismo verbal com que atores sociais tentam impingir opiniões e interesses particulares, cobrindo-os com o “manto da verdade”. Da política à economia, do noticiário internacional ao esportivo, não faltam reportagens, comentários, notas e artigos endossando a tese equivocada de que narrar é o mesmo, ou quase o mesmo, que tentar ludibriar a opinião pública. Notícia recente nos informa que a China tenta emplacar sua versão na “guerra das narrativas” da Covid -19. Reportagem conta que o Talibã usa as redes sociais para disseminar “narrativa” segundo a qual abandonou posições extremistas. Um articulista esportivo decreta: “Criou-se a falsa narrativa de que tudo mudou com Renato no Fla”. Na CPI da Covid, um senador dispara ao depoente: “O que está dizendo é apenas uma narrativa”, querendo dizer que o testemunho é mentira.

Tudo se passa como se a narrativa fosse sempre o terreno da propaganda impostora, do discurso ideológico e do sofisma. Sobretudo a política de matiz populista se apropria da noção de pós-verdade, segundo a qual, na hora de formar a opinião pública, mais valem as crenças pessoais, as emoções e as versões que os fatos objetivos. Vale lembrar dois pontos. Primeiro, a pós-verdade difere da noção tradicional de falsificação da verdade, ao preconizar que algo que aparente ser verdade é mais importante que a própria verdade. O segundo é observar a tentativa de seus adeptos de conferir à mentira um lastro filosófico que, no entanto, a boa filosofia nunca autorizou. A famosa tese de Nietzsche de que não existem fatos, apenas interpretações, nunca significou um “vale-tudo”. Pretendeu, antes, opor-se aos princípios do positivismo e nos advertir sobre não haver verdade definitiva, absoluta e indiscutível — e toda verdade precisar ser revirada, debatida, examinada. Nem mesmo Platão, em sua república utópica, jamais receitou a mentira como instrumento sem limites ao governante, considerando que ele teria permissão de mentir apenas se fosse inexorável para o bem comum.

A pós-verdade ganhou força a partir do momento em que a Torre de Babel ressurgiu na forma de redes sociais, em que cada portador de computador ou smartphone passou a ter pelo menos a sensação de participar do debate público. Talvez esse tenha sido o momento em que a narrativa perdeu a aura de termo sagrado da teoria literária para se tornar protagonista na degradada praça pública.

Contra essa usurpação da narrativa, é preciso lembrar que narrar é inerente à condição humana, como ensinam antropólogos, filósofos, linguistas e historiadores. Por meio de narrativas, a variedade dos acontecimentos particulares da nossa experiência é articulada e ordenada. Por intermédio do discurso e da linguagem, o narrador estabelece relações entre fatos presentes e passados, lhes atribui sentido e desenha expectativas de desdobramentos futuros. Trata-se, na expressão formidável de Paul Ricoeur, de uma “síntese do heterogêneo” de que é feita nossa experiência, da ordenação da enorme diversidade de acontecimentos, situações, causas e motivações que compõem a existência, individual ou socialmente. Comunicadores são atores fundamentais nisso, uma vez que narrar e comentar os fatos da vida pública é parte essencial de seu ofício.

É indiscutível que, a partir dos mesmos eventos, podem ser construídos os mais divergentes relatos. Chega, aliás, a ser um truísmo afirmar que pode haver tanto narrativas verdadeiras quanto falsas. É por isso que se faz cada vez mais necessário que o comunicador se dedique a produzir, tanto quanto possível, textos precisos e solidamente fundamentados. Para comunicar bem, não basta escrever bem. A comunicação não se reduz à simples questão de estilo. Sobretudo no mundo atual, em que as fontes de informação são múltiplas, em que um sem-número de dados se encontra disperso, comunicar é saber ler, organizar, interpretar e traduzir tudo em linguagem acessível. O comunicador deve combinar o talento do artista na lida com o texto ao rigor do cientista no trato com os dados. E isso, leitoras e leitores, só se faz por meio de boa narrativa. Não há outro caminho.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Hamilton dos Santos

Jornalista, mestre e doutor em Filosofia, ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Também é formado em Administração de Empresas pela Stanford Global Business School. Tem experiência em diversas redações dos principais veículos de comunicação do Brasil e como diretor de Recursos Humanos da Editora Abril, onde trabalhou por 20 anos. Atualmente é diretor executivo da Aberje – Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, representa a instituição na Global Alliance For Public Relations and Communication Management e é membro da Page Society, do Conselho da Poiésis e um dos líderes do movimento “Tem Mais Gente Lendo”.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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