Cuidado com a “comunicação reborn”!

Estamos mergulhados, no mundo atual, em uma realidade que nos traz, ao mesmo tempo e em ritmo alucinante, sonhos e pesadelos, realizações e agruras, entusiasmos e frustrações, tudo ao alcance de uma mensagem, um clique, um scroll, um vídeo, uma imagem…e a vida no dia a dia?
Recentemente, saí de uma reunião densa e para arejar os pensamentos resolvi caminhar pela Avenida Paulista. Era o final de uma tarde ensolarada, e eu voltaria para o escritório. Neste trajeto, avistei de longe uma figura e fui apurando o olhar, interessado no que imaginava ser. Era uma jovem senhora que empurrava um carrinho de bebê. Trazia no rosto uma expressão serena e, na boca, um quase sorriso, de uma mulher elegante que parecia orgulhosa no seu passeio. Eu caminhava no sentido oposto e só compreendi a razão da minha curiosidade quando cheguei mais perto da mãe e da criança dentro do carrinho. Nos encontramos na faixa de pedestres e ficamos parados lado a lado aguardando o semáforo para atravessar a avenida, tempo suficiente para minha perplexidade subir além do topo do edifício mais alto da Paulista: a criança era o tão falado bebê reborn! Não acreditei. A moça levava o boneco para um passeio! Vestida como uma mãe dos anos 1970, com seu bebê no carrinho. O semáforo fechou, os carros pararam e eu fiquei olhando-a atravessar a avenida pensando no mundo em que vivemos hoje.
Por esses dias, em Belo Horizonte, um homem de 36 anos agrediu com um tapa na cabeça um bebê humano de quatro meses, que estava no colo da mãe, alegando que era um reborn e que ela o usava para ganhar preferência na fila em um trailer de lanches. Pessoas que assistiram a cena contiveram o agressor até a chegada da polícia. O homem foi preso (e no dia seguinte solto por uma medida de liberdade provisória) e o bebê foi levado para atendimento em um hospital, tendo igualmente sido liberado no dia posterior.
Bebês reborn não são mais uma novidade, se incorporaram ao cotidiano. Isso é bom ou ruim? Embora esteja no campo do livre arbítrio de cada um ter ou não, o vínculo com bebês reborn pode ter efeitos positivos e negativos na saúde mental, dependendo de como isso é conduzido. Em alguns casos, pode ser uma ferramenta terapêutica, ajudando a lidar com luto, ansiedade ou solidão. No entanto, o apego excessivo e a busca por uma conexão que substitua relações reais podem ser perigosos, indicando a necessidade de ajuda profissional.
O conceito de bebê reborn originou-se pelo artesanato de mães inglesas, diante da escassez de recursos, no fim da Segunda Guerra Mundial, que começaram a restaurar bonecas antigas para dar-lhes uma nova vida, permitindo que suas crianças tivessem brinquedos renovados naqueles tempos difíceis. A prática evoluiu ao longo das décadas, e a partir dos anos 1990 assumiram aspecto mais realista. Isso continuou evoluindo, até chegarmos aos modelos ultrarrealistas que vicejam nas redes sociais e nas ruas hoje. Por aqui, apareceu nos anos 2000, com a internet, e agora voltou com a força das redes sociais, um pouco como notícia, outro tanto como piada.
A efervescência e as discussões em torno do tema nos levam a pensar em nós mesmos e no que temos feito com nosso ofício de comunicar.
Pegue emprestado apenas o conceito do bebê reborn e o sentimento do que temos visto, lido e pensado a respeito, para fazer uma reflexão. Encare a afirmação: em alguns casos, estamos praticando uma “comunicação reborn”? Se olharmos bem de perto, nos descobriremos participantes dela? Porque, de certa maneira, pode ser compreensível que, estando dentro do ambiente corporativo, perde-se a sintonia fina da realidade das ruas. É preciso estar atento.
Mas, afinal, o que é “comunicação reborn”? É aquela comunicação que parece coisa do passado, traz um luto de alguma coisa que perdemos e queremos resgatar ou fazer renascer. Mas também parece alguma coisa que é mas não é, que é só bonita e não diz nada, é vazia, é o mais ou menos, é o lucro a qualquer custo…e até pode ser resultado de uma mentira exaustivamente repetida que virou verdade pelo cansaço.
A comunicação pasteurizada gera consumidores apáticos: pessoas que pararam de se indignar e se acostumam com o que lhe entregam, que normalizam as coisas, deixaram de lutar pelo que julgam certo e se tornam impávidos atrás de uma mesa de escritório.
É preciso parar e procurar reconhecer o porquê da adoção de uma comunicação que, por vezes, vende uma situação irreal, para suprir carências: o comercial da margarina no qual a família reunida e feliz toma seu café da manhã. É reborn, é vazio, é frustração. Ou a publicidade do casal sorridente correndo em câmera lenta na praia um ao encontro do outro para vender creme dental. É lacração. Ou, até, a vida que passa diante de nossos olhos filtrada e turbinada por influenciadores que vendem sonhos, emoções, ilusões, perfeição e plasticidade.
A Netflix tem um documentário, “A Conspiração Consumista”, que trata das estratégias e táticas utilizadas por grandes marcas para incentivar o consumo excessivo e manipular os consumidores para que comprem produtos desnecessários. É sobre, ainda, a obsolescência programada e o impacto ambiental que isso provoca. É interessante.
Portanto, antes de acreditar no que nos chega lindamente embalado, vale perguntar o que tem por trás dessa comunicação. Ela reflete realmente o pensamento da empresa ou da marca? Como comunicadores e como consumidores nos compete ajudar a alta direção das organizações para as quais trabalhamos, e também consumimos, a evitar a todo custo atitudes reborn, vazias de propósito ou enlutadas e embaladas somente pelo passado e pela falta de perspectiva.
Afinal, o mundo passa, atualmente, por um momento mais delicado do que as tensões habituais e o desenvolvimento tecnológico, as redes sociais e a Inteligência Artificial têm imposto às pessoas um modo de vida e de trabalho que ainda não conhecemos completa e amplamente. E tudo sob o impacto de mudanças climáticas com previsões e acontecimentos que merecem atenção.
Não temos tempo para o “fazer de conta” e o sonho de fazer nascer um mundo melhor se constrói a cada dia. Isso significa, muitas vezes, lidarmos com os traumas e lutos diversos que carregamos no peito, no coração e no cérebro. Quando isso passa para os processos de comunicação, as consequências podem ser imprevisíveis.
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