COlabora #9: Precisamos falar sobre…
Publicado originalmente no LinkedIn em 29/11/2021
Poucas áreas foram tão transformadas pela profunda evolução tecnológica das últimas décadas quanto a Comunicação. E o melhor: com a incorporação de processos que vêm revolucionando o valor da dimensão humana no processo. Não apenas nas organizações, mas todos os cidadãos foram alçados ao papel de comunicadores, e a própria dinâmica da atenção sofreu abalos significativos. Falta tempo, sobra informação.
Os elementos que formavam a base do que poderia ser considerado o bem comunicar viraram de ponta-cabeça. Onde antes se ganhava com a exclusividade, agora se espera o compartilhamento. O fator surpresa perdeu espaço e importância para a transparência constante nos relacionamentos com nossos interlocutores. Controle não faz mais sentido, engajamento e evolução para o comprometimento são os valores que nos orientam. Em lugar de concorrência, colaboração, que aproxima e nos coloca de frente uns com os outros para criarmos e recriarmos juntos.
Em meio a tantos estímulos, como sermos relevantes? Algumas lições nossas organizações parecem já ter aprendido. Que a comunicação se faz por todos, em movimentos contínuos, na forma como as relações são criadas e estimuladas no dia a dia, no valor da atitude de cada pessoa que se vê presente naquele processo. Que investidores e a sociedade cada vez mais exigem coerência entre o que a empresa alardeia e o que pratica. Que reputação precisa ser gerenciada, com mapeamento de stakeholders e riscos.
Para isso, relacionamento e monitoramento constantes são mandatórios. As narrativas que se formam a partir desses relacionamentos são capazes de contar histórias que inspiram, são exemplo, mobilizam os times e nos levam a efetivamente sermos aquilo que somos. Em meio a tantos encontros, nós nos descobrimos naqueles em que há reciprocidade.
Entre o muito que ainda há a aprender, por outro lado, uma demanda parece estar no cerne da luta por espaço e relevância na mente de funcionários, clientes, comunidades e outros públicos de relacionamento das organizações: a necessidade de encararmos e orientarmos as conversas difíceis para, a partir delas, construirmos relevância.
Quantas decisões que desagradam a força de trabalho de uma empresa ganham os corredores antes de ocuparem os canais formais de comunicação, pela relutância dos líderes em comunicá-las tempestivamente? Quantos pontos controversos são ausências gritantes nos discursos institucionais? Quantas crises têm origem num ruído, numa omissão, na falta de clareza e transparência?
Não há relevância sem conexão verdadeira. Atenção sem diálogo. Geração de valor sem escuta. Tão crucial quanto escutar, no entanto, é responder e corresponder às expectativas do outro. Antes disso: reconhecer o outro. É no relacionamento com o outro que temos nossa realização. Para o filósofo austríaco Martin Buber, o homem se define no mundo na relação com o outro. No livro “Eu e Tu”, o autor diferencia duas formas de relação: “eu-tu”, marcada pela reciprocidade e confirmação mútua, que implica uma alteridade essencial; e “eu-isso”, marcada por uma atitude monológica, na qual o “eu” usa a relação para conhecer o mundo, impor-se diante dele, ordená-lo e vencê-lo.
Qual das duas formas se parece mais com o passado do modelo de comunicação de nossas empresas? E qual delas parece ter futuro no mundo atual? Reconhecer a alteridade pressupõe considerar as diferenças, entender o que faz sentido para o outro e buscar a conexão verdadeira, inclusiva e empática. Dá trabalho. Exige presença, firmeza e coragem. Deixar para trás o velho hábito de ocultar discretamente embaixo do tapete os temas sensíveis, as verdades difíceis de serem ditas, os erros que precisam ser assumidos e as consequências que clamam por reparação.
Nossas cartilhas já incorporaram a necessidade de ouvir os stakeholders, as ferramentas tecnológicas permitem o monitoramento de suas reações muitas vezes em tempo real, mecanismos de escuta compõem nossas estruturas corporativas e os processos de elaboração dos relatos que o mercado exige de nossas empresas. Mas, muitas vezes, falta a coragem de dizer aquilo que o outro precisa ouvir. Não porque é o melhor, ou o mais cômodo. Mas simplesmente porque é a verdade – que, quando não dita, ainda assim paira soberana na névoa da dissimulação, gerando dúvida, desconfiança, incerteza, desengajamento.
Falar sobre os temas incômodos, os pontos que ainda precisam ser aprimorados e os erros que aguardam reparação é condição essencial para uma interação verdadeira. É evidente que sempre podemos escolher o caminho mais fácil da relação “eu-isso”, tentando impor nossas verdades e abordando o outro com base em nossa necessidade de ordem e controle. Mas temos uma certeza: nessa relação jamais construiremos confiança, engajamento e reconhecimento.
O maior desafio da Comunicação atual também pode ser, portanto, um dos caminhos para sua própria solução. Não há como ser relevante sem se fazer relevante. E, se antes a relevância estava na informação que se entregava, hoje pode estar no que se escuta – e que transforma a partir de nossas escutas. Como protagonistas da Comunicação, cabe-nos a responsabilidade de instigarmos, no interior de nossas organizações, espaços de diálogo para que as relações verdadeiras floresçam, dentro e fora delas, para que o “nós” assuma relevância. Apontar as inconsistências, alertar para a força deletéria do não dito, comprovar que uma verdade incômoda, comunicada tempestivamente, pode ter um efeito muito menos nocivo que a alternativa de a esconder até que ela grite mais alto que as histórias bonitas que queremos contar. As conversas difíceis começam “em casa”. E delas depende a energia que seremos capazes de mobilizar para a transformação das relações com o mundo ao nosso redor.
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