A visibilidade dos coveiros
Alguns trabalhadores são quase invisíveis. Uma invisibilidade construída socialmente. Um desaparecimento que é consequência principalmente da exclusão econômica e educacional. Eles são os empregados domésticos, para os quais, em muitas empresas e residências, são destinados as entradas, corredores e elevadores exclusivos. São os operários a quem as altas direções empresariais denominam de chão de fábrica, expressão abominável que deveria ser varrida da comunicação empresarial.
Entre esses invisíveis sociais, quero destacar o coveiro. Aquele trabalhador simples e braçal que sepulta, que abre covas para os defuntos. Aquele que abrirá uma cova para nos sepultar, assim, eu espero. Um trabalhador fortemente ligado às ideias de partida, de fim, de transição da vida humana para outra coisa. Alguém que trabalha em um ambiente que nos inquieta a questão se há ou não vida após a morte. O coveiro está ligado, de alguma forma, à ideia de transcendência.
Antígona, personagem de uma das mais conhecidas tragédias escritas por Sófocles, foi contra as leis da cidade pelo direito de enterrar e honrar o seu irmão Polinice. Talvez Antígona seja a coveira mais famosa da cultura ocidental. O coveiro tem a consciência de sua importância? Sobre isso, Hamlet pergunta: “Has this fellow no feeling of the business, that sing at grave-making?” [Shakespeare, Hamlet, Ato V].
Os invisíveis, quando ganham consciência de suas importâncias, vão atrás de visibilidades mais ajustadas às suas relevâncias sociais e econômicas. Faxineiros e lixeiros têm as suas importâncias realçadas para a sociedade quando entram em greves e deixam montanhas de lixo nas empresas e nas ruas das cidades. No entanto, o invisível coveiro pode fazer greve?
O profano e o sagrado
Semana passada, a imprensa paulistana destacou a greve inédita dos empregados do serviço funerário, que reivindicavam aumento de salário, um plano de carreira e melhores condições de trabalho, deixando insepulta, por horas, mais de uma centena de cadáveres, em hospitais e casas da capital. Uma foto publicada na primeira página da Folha de S.Paulo na quarta-feira (22/6), mostrava um grupo de coveiros protestando dentro de covas semi-abertas, à espera de seus mortos, no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. É uma foto posada, destinada a midiatizar uma chantagem sobre os vivos, fragilizados pela perda e pelo luto, com a ameaça simbolicamente poderosa de deixar os seus mortos ao relento, em meio ao inverno chuvoso, embaixo da poluição, na solidão dos quartos das casas de repouso, nas geladeiras dos necrotérios paulistanos.
Uma greve injusta, sob o ponto de vista dos homens e dos deuses. Coveiros e o seu sindicato, agora, usam para dar visibilidade aos seus pleitos trabalhistas a mesma lógica da máquina que produz e mantém as celebridades. Celebridades tiram as roupas, fazem sexo em frente das câmeras fotográficas e de televisão. Coveiros desrespeitam os vivos fingindo-se de meio-mortos, nas primeiras páginas dos jornais.
Como se sabe, esses trabalhadores cuidam da burocracia e dos rituais de nossas partidas. Um conjunto de trâmites que junta aspectos profanos e sagrados. Os rituais profanos ligados às últimas papeladas e despesas devem ser rápidos e respeitosos, legalizando e legitimando a desobrigação do morto de seus contratos, de suas obrigações. Os rituais sagrados tecem, no plano das crenças e dos valores, o desaparecimento de todo o protagonismo humano em direção a um mistério quase indecifrável.
Dentro desse contexto, a forma que os coveiros paulistanos encontraram para dar visibilidade as suas reivindicações trabalhistas, mais do que ilegal, é ilegítima.
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