05 de setembro de 2006

A história da Volks está sendo esquecida

Um dos maiores desafios que se coloca para as empresas na atualidade é o resgate e conservação da memória empresarial, conjunto de sensações, lembranças e experiências, tanto boas quanto ruins, que as pessoas guardam de sua relação direta com uma empresa. Aquela idéia de que o passado é algo descartável, que precisa ser jogado fora para não ocupar lugar, está acabando.

Afinal, num mundo em transformação fugaz, mudanças corporativas constantes e grande rotatividade de recursos humanos, a memória é capaz de ser o chão e o ar do conhecimento corporativo. Ou seja, o material que dá a base e, ao mesmo tempo, instiga a organização a seguir em frente. Especialmente porque armazenar informação é uma forma de manter a sabedoria. Além disso, a memória empresarial fortalece o sentimento de ‘pertencer’. E isso traz efeitos positivos à produtividade.

Essa percepção bate frontalmente com o que se vê no episódio do embate entre a Volkswagen e os trabalhadores, que vem ocupando as páginas dos jornais. A história, no caso da Volks, está sendo esquecida. A VW foi uma empresa pioneira na comunicação empresarial.

Quando os primeiros ‘fuscas’ começaram a sair das linhas de produção no final do governo JK, a fábrica abriu suas portas para os repórteres, em especial a mídia especializada. Assim, não apenas ensinou o país a dirigir como contribuiu para que o relacionamento com a mídia ganhasse nova velocidade. Com o passar do tempo, a companhia continuou investindo em comunicação empresarial.

Buscou o diálogo com a imprensa, mesmo nos períodos mais difíceis como os que marcaram as grandes greves de 1978 no ABC paulista – quando o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva emergiu no cenário político como liderança sindical maior – e, mais tarde, já no governo do general Figueiredo, época em que terçou armas contra os elevados impostos e, inclusive, ameaçou deixar o Brasil. Em todos os conflitos, prevaleceu a tendência para o diálogo, o culto ao entendimento.

Diferenças de grau

O que está acontecendo agora? Qual a origem da ruptura da Volks com sua histórica postura de diálogo? As grandes corporações estão, todas elas, passando por sucessivos ajustes sempre em busca de cortar custos, fazer economias. A base do sistema produtivo, graças a revolução da informática, está mudando e a cada movimento precisa de menos mão de obra, o que significa mais desemprego. O que fazer?

As empresas criaram políticas globais e agem como um corpo só quando trata de aplicá-las. Tudo se tornou muito centralizado, muito uniforme, muito infenso a olhar mais de parte as peculiaridades locais. Em conseqüência, grandes erros têm sido cometidos.

Pense num repórter que solicita uma entrevista a um presidente de multinacional. A pauta vai parar na sede da companhia nos EUA, Europa onde quer que seja o QG e volta, dias depois. O tempo passa. A velocidade da redação brasileira é maior do que a capacidade da companhia de dar respostas ao que foi perguntado. Resultado, instala-se a desconfiança. Ganham forma as crises de relacionamento.

Com as políticas globais, as diferenças são de grau. Uma onda de desemprego tem impacto muito mais vasto do que uma pauta que não é respondida no tempo adequado. É assim que as grandes marcas, muitas vezes, criam problemas para si próprias, como se fossem protagonistas de uma moderna marcha da insensatez.

Tese do conflito

A VW é caso emblemático. A decisão das demissões não contemplou as negociações com os sindicatos, nem veio acompanhada de medidas para atenuar o impacto negativo dos cortes de postos de trabalho, ritos inerentes às modernas democracias que a empresa moderna muitas vezes conhece, mas sente dificuldades para levar à prática.

A pergunta que fica é: qual o passivo que as demissões anunciadas pela VW deixarão junto aos seus diversos públicos, entre eles o consumidor brasileiro? Ele irá reagir? Como as montadoras concorrentes poderão tirar partido da situação? O Brasil foi a grande fronteira de expansão do VW no pós II Grande Guerra. Aqui, a montadora alemã pôde dispor de amplo mercado e incentivos substanciais por parte do Estado. A empresa ensinou o país a dirigir, mas em contrapartida aqui ganhou fôlego para um longo ciclo de expansão mundial.

É hora de resgatar esta história. Hora de refletir sobre o caminho percorrido. Certamente, a saída é lançar pontes no rumo do entendimento. A VW tem uma história e reputação absolutamente construtiva no país. Não pode deixar que essa história seja obscurecida por um momento de irreflexão. Não se pode esquecê-la nem mutilá-la num momento de dificuldade, nem deixar que a tese do conflito envolva em sombras as lições de uma história toda modelada na busca da convergência.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Paulo Nassar

Diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje); professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); doutor e mestre pela ECA-USP. É coordenador do Grupo de Estudos de Novas Narrativas (GENN), da ECA-USP; pesquisador orientador de mestrado e doutorado (PPGCOM ECA-USP); pesquisador da British Academy (University of Liverpool) – 2016-2017. Entre outras premiações, recebeu o Atlas Award, concedido pela Public Relations Society of America (PRSA, Estados Unidos), por contribuições às práticas de relações públicas, e o prêmio Comunicador do Ano (Trajetória de Vida), concedido pela FundaCom (Espanha). É coautor dos livros: Communicating Causes: Strategic Public Relations for the Non-profit Sector (Routledge, Reino Unido, 2018); The Handbook of Financial Communication and Investor Relation (Wiley-Blackwell, Nova Jersey, 2018); O que É Comunicação Empresarial (Brasiliense, 1995); e Narrativas Mediáticas e Comunicação – Construção da Memória como Processo de Identidade Organizacional (Coimbra University Press, Portugal, 2018).

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