O Setor Saúde na Agenda 2030: de “vilão perdoado” a protagonista ESG

Poucos setores têm tanto potencial de impacto positivo — e de contradição — quanto o setor saúde. Farmacêuticas, laboratórios, hospitais, operadoras de planos e toda a cadeia envolvida na promoção, prevenção e assistência à saúde movimentam trilhões de dólares globalmente. No entanto, quando o assunto é a Agenda 2030 da ONU e as práticas ESG, o setor ainda opera aquém de sua capacidade transformadora.
Há uma oportunidade real e urgente: reposicionar o setor saúde não apenas como parte do sistema de cuidados, mas como protagonista do desenvolvimento sustentável. Não se trata de caridade ou marketing verde. Trata-se de estratégia de valor de longo prazo, mitigação de riscos, acesso a capital e reputação corporativa.
Responsável por cerca de 10% do PIB global e, aproximadamente 9,5% do PIB brasileiro, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o setor movimenta mais de R$ 900 bilhões por ano no país, sendo um dos setores mais dinâmicos, intensivos em tecnologia e com forte participação privada.
Essa relevância econômica vem acompanhada de uma responsabilidade proporcional na agenda do desenvolvimento sustentável, além de pressões crescentes de investidores, consumidores e reguladores que exigem práticas mais transparentes, sustentáveis e socialmente responsáveis.
Muito além do ODS 3 “Saúde e Bem-estar”
Reduzir o setor saúde ao ODS 3 — “Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades” — é subestimar uma das cadeias mais complexas, inovadoras e influentes da economia brasileira. Gerador mais de 20 milhões de empregos diretos e indiretos gerados, segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), é responsável por aproximadamente um terço da produção científica nacional, conforme dados da Scielo Brasil, o setor é um vetor estratégico de conhecimento, inovação e comportamento social.
Essa dimensão impõe ao setor um papel que vai muito além do cuidado clínico. O acesso diário a milhões de pessoas e o protagonismo na formação de profissionais em saúde oferecem uma plataforma poderosa para disseminar boas práticas, induzir novos hábitos e acelerar a transição para modelos mais sustentáveis de vida e produção. Em outras palavras, o setor saúde não pode se restringir a olhar para si mesmo — é preciso formar cidadãos, não apenas tratar pacientes ou atender consumidores.
Essa abordagem ampliada exige compreender que “fazer saúde” não acontece apenas entre paredes hospitalares ou consultórios, mas também na relação com o meio ambiente, com os territórios e com a governança institucional. A saúde ambiental, por exemplo, conecta diretamente os ODS 6 (Água Potável e Saneamento), ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis), ODS 12 (Consumo e Produção Responsáveis) e ODS 13 (Ação Contra a Mudança Global do Clima). Poluição do ar, contaminação da água, desastres climáticos e insegurança alimentar impactam diretamente a saúde populacional e sobrecarregam os sistemas de atenção.
Já a governança saudável — orientada por ética, equidade e responsabilidade social — integra a essência dos ODS 5 (Igualdade de Gênero), ODS 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico), ODS 10 (Redução das Desigualdades) e ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes). O setor saúde, que emprega majoritariamente mulheres e está presente nos territórios mais vulneráveis, precisa reforçar seu papel na promoção de ambientes de trabalho inclusivos, na formação de lideranças diversas e na proteção ativa dos direitos humanos.
Organizações como a Health Care Without Harm, no Brasil representada pelo Projeto Hospitais Saudáveis (PHS), já defendem abertamente que a sustentabilidade deve ser um imperativo institucional no setor saúde, e não apenas uma pauta secundária. Relatórios recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da ONU Meio Ambiente reforçam que os sistemas de saúde resilientes são aqueles que integram dimensões ambientais, sociais e econômicas em sua estrutura e operação.
Se o setor saúde quer, de fato, ser parte da solução e não do problema, precisa se comprometer com uma visão holística, multissetorial e interdependente da sustentabilidade. Afinal, o impacto gerado por suas operações, cadeias produtivas, decisões de investimento e ações educativas reverbera muito além dos muros institucionais — influencia diretamente a qualidade de vida, a justiça social e a saúde do planeta.
Setor Saúde: o vilão perdoado
Apesar do papel crucial que o setor saúde desempenha para o bem-estar social, ele frequentemente é eximido das responsabilidades socioambientais e de governança que pesam sobre outras indústrias. Este fenômeno, que podemos chamar de “vilão perdoado”, revela um paradoxo: enquanto o setor é celebrado por salvar vidas, muitas vezes ele é isento de um escrutínio rigoroso sobre seu impacto ambiental e práticas éticas, aspectos centrais para a sustentabilidade corporativa na era da Agenda 2030.
Um exemplo emblemático está no debate sobre a poluição plástica. O setor saúde é um dos maiores geradores de resíduos plásticos no mundo, principalmente por conta dos equipamentos descartáveis, embalagens e insumos médicos. Segundo relatório da Health Care Without Harm (HCWH), o setor saúde gera cerca de 4,4 milhões de toneladas métricas de resíduos plásticos anualmente só nos EUA — uma cifra que cresce globalmente com o aumento dos cuidados médicos. No entanto, o setor não é tradicionalmente incluído nos planos “net zero” ou nas políticas corporativas ambientais com a mesma intensidade que setores como energia, transporte ou indústria.
No campo da governança, o setor saúde também enfrenta desafios consideráveis. A OMS reconhece que a corrupção afeta substancialmente a qualidade dos serviços de saúde e o acesso a medicamentos essenciais, reduzindo a eficiência dos gastos públicos e privados. Entretanto, discussões sobre compliance e transparência no setor saúde frequentemente ganham menos destaque do que em setores como o financeiro ou energético, dada a percepção da área como “mais sensível” e com “menos espaço para controvérsias”.
Além dos desafios ambientais e éticos, a cadeia de suprimentos do setor saúde frequentemente negligência questões cruciais de direitos humanos, como a prevenção do trabalho escravo, trabalho infantil e condições degradantes de trabalho. Infelizmente, ainda hoje o setor saúde global depende significativamente de fornecedores em regiões onde tais práticas são mais comuns e menos fiscalizadas. A complexidade e a fragmentação das cadeias upstream — envolvendo desde matérias-primas para equipamentos médicos até insumos farmacêuticos — dificultam a rastreabilidade e o monitoramento efetivo das condições laborais. Apesar de sua posição estratégica, muitas empresas do setor ainda não adotam políticas robustas para garantir a conformidade social e ambiental de seus fornecedores, expondo-se a riscos reputacionais e legais.
Este cenário de isenção parcial pode retardar o avanço das práticas ESG no setor saúde, minando seu potencial para liderar verdadeiramente a sustentabilidade integrada. Instituições como a International Finance Corporation (IFC) e a Global Reporting Initiative (GRI) alertam para a necessidade urgente de incorporar critérios ambientais, sociais e de governança de forma mais rigorosa e transparente nos negócios da saúde — desde laboratórios farmacêuticos até hospitais e operadoras.
Reconhecer o setor saúde como um “vilão perdoado” é o primeiro passo para ampliar a responsabilidade corporativa, mitigar riscos ambientais e sociais, e alinhar o setor aos objetivos da Agenda 2030 de forma plena e consistente. O desafio é urgente: o setor que salva vidas também precisa salvar o planeta e fortalecer sua integridade institucional para ser sustentável no longo prazo.
O setor saúde que inspira: práticas ESG que estão transformando o cuidado
A incorporação de critérios ESG no setor saúde ainda é desigual. Enquanto algumas grandes farmacêuticas e hospitais de ponta avançam em metas de descarbonização, equidade e governança, uma parcela significativa do setor segue operando com baixa transparência, alta produção de resíduos hospitalares, pouca diversidade em cargos de liderança e acessos desiguais a medicamentos e serviços.
Em 2023, apenas 27% das empresas de saúde listadas na B3 publicaram relatórios ESG robustos com indicadores auditáveis, segundo levantamento da SITAWI Finanças do Bem. O desafio não é apenas reportar — é transformar.
Embora o setor saúde enfrente desafios significativos em sua jornada ESG, é importante reconhecer que diversas organizações estão liderando iniciativas transformadoras. Conforme reportagens da Exame ESG, empresas do setor têm implementado ações concretas que demonstram um compromisso genuíno com a sustentabilidade, a inclusão e a inovação.
Algumas organizações têm investido na criação de ecossistemas de saúde sustentáveis, desenvolvendo plataformas integradas que conectam diversos serviços, inclusive de terceiros. Essas iniciativas visam colocar o paciente no centro do processo, ampliando o acesso à saúde e promovendo a prevenção e o tratamento de forma mais eficiente.
A pandemia da COVID-19 acelerou as práticas ESG em várias empresas do setor. Algumas organizações reforçaram programas de diversidade e inclusão, mapeando quadros de funcionários com significativa representatividade de mulheres, pessoas negras e pardas, LGBTI+, pessoas com mais de 50 anos e pessoas com deficiência.
O engajamento de funcionários e fornecedores em práticas sustentáveis tem sido uma prioridade para algumas organizações. Com milhares de funcionários, empresas têm trabalhado para mostrar que mudanças climáticas e outras agendas ambientais são relevantes para todos os stakeholders, promovendo uma cultura organizacional alinhada com os princípios ESG.
Instituições de saúde também têm demonstrado seu compromisso com a agenda ESG ao se tornarem signatárias do Pacto Global da ONU e ao lançarem relatórios anuais de sustentabilidade. Esses documentos detalham as ações e metas relacionadas ao meio ambiente, responsabilidade social e governança, reforçando a transparência e o alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
No campo da saúde pública, o CEJAM (Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim), tem se destacado como uma Organização Social que incorpora a agenda ESG de forma estruturada. Seus projetos integram responsabilidade ambiental, inclusão, ética institucional e gestão baseada em evidências. A adesão ao Pacto Global da ONU reforça seu compromisso com os princípios de direitos humanos, trabalho decente, meio ambiente e combate à corrupção. A instituição mantém um Programa de Integridade robusto, com política de tolerância zero à corrupção, código de ética e conduta, canal de denúncias com proteção ao denunciante e ações contínuas de capacitação ética. Transparência, governança responsável e respeito à legislação são princípios incorporados à gestão, com reconhecimento de entidades sindicais pela valorização de profissionais e boas práticas trabalhistas.
No eixo ambiental e social, destaca-se o projeto Descobrindo Sabores, em parceria com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), que oferece refeições veganas em hospitais do SUS, promovendo saúde, redução de impacto ambiental e educação alimentar. O CEJAM também demonstra seu compromisso com o combate à poluição plástica ao isentar de PVC todo o seu abastecimento de luvas de procedimento, um insumo de alto volume no cotidiano hospitalar. No cuidado com os profissionais, oferece acesso gratuito a uma plataforma de saúde emocional que disponibiliza sessões online com psicólogos, conteúdos educativos, práticas de meditação e ferramentas de autoconhecimento, além de tantos outros benefícios, acompanhados por uma reconhecida política de remuneração justa, bem como uma alta reputação por parte de entidades sindicais pela manutenção do diálogo e respeito às normas trabalhistas. Assim, a instituição reafirma que é possível promover saúde pública com responsabilidade socioambiental, ética e inovação, contribuindo diretamente para a promoção da equidade e o fortalecimento do SUS.
Conclusão
A urgência climática, as desigualdades sociais e a pressão por transparência e responsabilidade demandam uma nova postura do setor saúde. A Agenda 2030 não é uma pauta acessória, mas um chamado à ação integrada — e o setor, com toda sua capilaridade, ciência e credibilidade, tem o potencial de liderar essa transformação.
Felizmente, o movimento já começou. Iniciativas de diferentes players comprometidos mostram que é possível — e necessário — alinhar cuidado com sustentabilidade, eficiência com justiça, lucro com ética. O futuro da saúde não será apenas mais tecnológico ou mais acessível: será também mais justo, verde e íntegro. Para que isso aconteça, é preciso abandonar o papel de “vilão perdoado” e assumir o protagonismo que a saúde sempre teve — desta vez, a favor da vida em todas as suas dimensões.
O potencial de impacto positivo é imenso — e o momento de agir é agora. A saúde do planeta e das futuras gerações depende disso.
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