27 de agosto de 2020
BLOG Agenda 2030: Comunicação e Engajamento

I can’t breathe: reflexões sobre a luta antirracista e o Pacto Global (ODS 5 e ODS 10)

 

“Eu não consigo respirar”. Essas foram às últimas palavras de George Floyd, cidadão americano, após ser sufocado por um policial, em 25 de maio de 2020, nos EUA. Desde então, a temática racial entrou em pauta na agenda de muitos países, inclusive no Brasil. Protestos diversos eclodiram, dando voz e visibilidade a um antigo problema social: o racismo. Este fenômeno, todavia, torna-se mais perceptível e, portanto, mais comprovável, por meio de dados estatísticos sobre a desigualdade racial presente em diversos espaços sociais.

Embora a população brasileira seja composta por aproximadamente 55% de pessoas negras, segundo Pesquisa Nacional de Domicílio (Pnad) do IBGE (2019), este número não se reflete na mesma proporção na sociedade atualmente. Pretos e pardos são ainda minorias em posições de liderança no mercado de trabalho, e entre representantes políticos no Poder Legislativo. Também no cenário jurídico não é diferente, onde cargos de magistrados e procuradores são, em grande maioria, ocupados por pessoas brancas.

Tal situação revela a existência de diversas expressões do racismo presente na sociedade brasileira (racismo estrutural), nas mais variadas instituições (racismo institucional), e de diferentes formas (racismo individual) (ALMEIDA, 2019). Ainda que a inexistência de raças humanas tenha sido comprovada, raça continua sendo uma categoria política utilizada para justificar e naturalizar as desigualdades existentes, atingindo toda a população negra, mas afetando, especialmente, as mulheres negras.

Segundo o estudo Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, elaborado pelo Ipea em parceria com a ONU Mulheres (IPEA, 2017), homens brancos têm os maiores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras. Ademais, além de terem os menores rendimentos, as mulheres negras são a que menos ocupam cargos de gerência e cargos executivos em empresas brasileiras (ETHOS, 2016) configurando uma violação ao direito humano à igualdade e a proibição da discriminação.

A Declaração Universal dos Direito Humanos (DUDH), desde 1948, garante o respeito aos princípios da igualdade e da não discriminação, estando estes valores refletidos em instrumentos internacionais regionais e no próprio ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição de 1988, imbuída de grande espírito de justiça social, expressamente proíbe o preconceito ou qualquer tipo de discriminação (art. 3º), repudia o racismo (art. 4º), e proclama a igualdade perante a lei (art. 5º), vedando distinções de qualquer natureza.

Logo, a promoção da igualdade, enquanto um importante direito humano, possui amplo suporte normativo. Ademais, sob o prisma étnico-racial, o Brasil ratificou importantes instrumentos no âmbito internacional. Cita-se, por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, na qual são apontadas duas estratégias que, utilizadas conjugadamente, podem agilizar o enfrentamento da discriminação: a) estratégia repressivo-punitiva; e b) estratégia promocional (PIOVESAN, 2008).

Neste contexto, para promover e fomentar a igualdade, se inserem as ações afirmativas como medidas especiais e temporárias, de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, com vistas a combater discriminações de gênero, raça ou origem nacional (GOMES, 2001). Essas medidas podem ser utilizadas por entidades públicas ou privadas, como, por exemplo, por meio de reserva de vagas para pessoas negras nas áreas da educação e do trabalho, no intuito de efetivar a igualdade, notadamente a racial, a que todos têm direito.

Em um cenário de acelerado processo de globalização, marcado por conseqüências humanas e ao meio ambiente, a comunidade internacional passou a discutir mecanismos de responsabilização socioambientais, na busca de um desenvolvimento econômico sustentável. Neste contexto, passou-se a exigir um modelo empresarial pautado na ética, na responsabilidade social e na sustentabilidade. E aí se insere o Pacto Global, lançado pela ONU em 2000, como uma importante iniciativa para promover a sustentabilidade corporativa.

O Pacto Global é a mais difundida iniciativa para a promoção de responsabilidade social corporativa no mundo, estando presente em dezenas de países. Pautado em dez princípios, dentro de quatro grandes áreas – direitos humanos, trabalho, meio ambiente e corrupção – visa estimular a comunidade empresarial e a sociedade civil à adoção de políticas de responsabilidade, crescimento sustentável e de cidadania. Dentre as práticas que os signatários podem se valer, insere-se a adoção de ações afirmativas para promover a inclusão de pessoas negras em seus quadros funcionais.

A Ordem dos Advogados do Brasil, signatária do Pacto Global, instituição da sociedade civil que tem dentre os seus compromissos a defesa da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito, e a promoção dos Direitos Humanos e da Justiça Social, vem se posicionando favoravelmente à implementação de ações afirmativas em favor da população negra. Com efeito, atualmente está em trâmite, junto ao seu Conselho Federal, a análise de proposta de ação afirmativa em seus órgãos – reserva de 30% dos seus cargos para advogados/as negros/as – no âmbito dessa instituição.

Ainda sob o paradigma da sustentabilidade, destaca-se a Agenda 2030, lançada em 2015 pela ONU. Neste plano de ação, as pessoas estão no centro da proposta de desenvolvimento sustentável, e devem, por isso, ser tratadas como protagonistas em uma nova concepção de crescimento econômico, capaz de promover a inclusão e a igualdade de todos (COLUCCI, 2016). Sob este enfoque, a busca para a promoção da igualdade racial, notadamente das mulheres negras, está amparada pelos objetivos 5 e 10, que tratam da igualdade de gênero, e do combate às desigualdades, respectivamente.

Se de um lado as Nações Unidas reconhecem que a população negra representa um grupo cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos, de outro, conforme verificado, disponibiliza mecanismos para que tais direitos possam ser efetivados. Neste sentido, instituições signatárias do Pacto Global, por meio da adoção de ações afirmativas, por exemplo, têm grande potencial para fazer frente à luta antirracial, contribuindo para a construção de uma sociedade efetivamente mais justa, fraterna e solidária.

Referências

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? São Paulo: Pólen, 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:  <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 01 jul. 20.

COLUCCI, Maria da Glória. Biodiversidade desafia os objetivos de desenvolvimento sustentável (ONU, 2015-2030). Disponível em: <http://rubicandarascolucci.blogspot.com/2016/01/biodiversidade-desafia-os-objetivos-de.html>. Acesso em: 10 jul. 20.

FACHIN, Melina Girardi; BOLZANI, Giulia Fontana. A Importância do Pacto Global como Standard de Proteção para Empresas e Direitos Humanos. In: Reflexões sobre o Pacto Global e os ODS da ONU. Org. Pamplona, Danielle (et.al.). Curitiba: Ithala, 2018.

FAYAD, Anelize Klotz Fayad. Responsabilidade Socioambiental Empresarial: Uma Abordagem a Partir do Índice de Sustentabilidade Empresarial. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2018.

GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. (A experiência dos EUA). Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Guia de Práticas Sustentáveis na Advocacia. Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná, 2019. Disponível em: <https://cdn-ab43.kxcdn.com/wp-content/uploads/2019/05/GUIA-DE-PR%C3%81TICAS-SUSTENT%C3%81VEIS-NA-ADVOCACIA-OABPR.pdf>. Acesso em: 01 jul. 20.

Instituto Ethos. Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas / Instituto Ethos e Banco Interamericano de Desenvolvimento. Disponível em: https://www.ethos.org.br/wp-content/uploads/2016/05/Perfil_Social_Tacial_Genero_500empresas.pdf. Acesso em: 01 jul. 20.

PIOVESAN, Flávia. Direito Internacional dos Direitos Humanos e Igualdade Étnico-Racial. In: SOUZA, Douglas Martins; PIOVESAN, Flávia (Coords.). Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Luciane Maria Trippia

Luciane Maria Trippia é advogada. Vice-Presidente da Comissão do Pacto Global da OAB/PR. Presidente da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB. Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professora licenciada no curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Endereço eletrônico: lutrippia@terra.com.br.

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