15 de abril de 2022

Fugindo da ilusão: Saneamento básico e essencial

Em um ambiente suscetível a mudanças climáticas, é importante considerar o saneamento como sistema interligado

*Publicado originalmente no JOTA, em 12 de abril de 2022

Desafios ambientais e sanitários potencializados em anos recentes com a
ocorrência de eventos climáticos extremos e a deflagração da pandemia da Covid19 reacenderam os holofotes sobre a essencialidade dos serviços de
abastecimento e saneamento básico para o enfrentamento de um cenário de
crescente complexidade.

Se para a solução das questões antes bastavam algumas operações algébricas,
agora, em um mundo ainda mais complexo, cálculos derivados e integrais são a
premissa básica para traçarmos as primeiras linhas do gráfico.

É justamente esta visão integral e holística que o momento exige. Em recente participação no SXSW, em Austin (EUA), onde falamos da importância dos rios
para as cidades, buscamos tratar desta “re-percepção” do cenário. Como ensinou
Einstein, a maior ilusão do mundo é a noção de separação. Esta verdade é ainda
mais absoluta para o saneamento básico e essencial.

Negligenciado ao longo de nossa história com a inexistência de políticas efetivas
para a expansão do atendimento, podemos considerar que o saneamento teve
apenas três grandes marcos nas cinco últimas décadas. O primeiro deles com o
Plano Nacional de Saneamento (Planasa), na década de 1970, com a estruturação
planejada dos serviços e a concepção das companhias estaduais a partir da
transferência de recursos federais.

Com a interrupção do Planasa em 1986, o tema voltou a ter sua importância
reconhecida mais de duas décadas depois com a publicação da Lei 11.445, de
2007. Foram estabelecidos regramentos para regulação e fiscalização dos
serviços, maior segurança jurídica aos contratos e denifidas diretrizes mais claras para a universalização do atendimento.

Atualmente vivenciamos o terceiro grande momento para o setor com a Lei
14.026/2020, que trouxe aprimoramentos importantes sobre a lei de 2007, a
exemplo da necessidade contratual do estabelecimento de metas e o
fortalecimento da regulação com a concentração de atribuições em um ente
nacional, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). A agência
passou a ser responsável por determinar as diretrizes de eficiência e qualidade
dos serviços para acompanhamento de desempenho das concessionárias pelos
reguladores locais.

Desta forma, um destaque foi a possibilidade de atendimento a áreas irregulares,
até então esquecidas muitas vezes por uma interpretação de que havia um
impedimento legal, outras vezes porque era legal esquecer as áreas com base em
interesses egoísticos e tolos.

Tolos porque no saneamento não existe a ideia de separação. Repita-se: a verdade de Einstein é ainda mais verdade. Os rios e córregos fluem, entre bairros em uma cidade, entre cidades e entre nações. A ideia de rios como barreiras ou fronteiras não merece mais prosperar. Precisamos desta “re-percepção”, desta reconexão. Rios são elementos de conexão, de integração, de paz e nunca de guerra. E é com este dogma que devemos pensar o saneamento. Uma inclusão radical. Saneamento para todos! Enquanto houver uma única criança pisando em esgotos nas favelas, uma única casa fora dos sistemas de esgoto, estaremos
transformando nossos rios (rivus, do latim) em fonte de vírus. Um anagrama que
nos explica muito sobre esta realidade.

Embora tardio, o aperfeiçoamento regulatório soube capturar as necessidades
sociais e ambientais de nossa época e vem reconhecer o saneamento como um
dos grandes vetores do desenvolvimento e da transformação social.

A expansão da oferta de serviços que proporcionam mais saúde, oportunidades e
dignidade para se viver vem fazer frente à uma realidade marcada pelo atraso. Em pleno século 21, aproximadamente 35 milhões de brasileiros ainda não têm suas casas abastecidas formalmente e quase a metade da população ainda não tem coleta de esgotos, segundo levantamento do Instituto Trata Brasil com base em dados do Ministério do Desenvolvimento Regional.

Em um cenário como esse, o resultado não pode ser outro senão o aumento das
Alas nos postos de saúde em razão das doenças de transmissão hídrica, o baixo
desempenho na educação das crianças e a renúncia ao desenvolvimento. Como é
notório, além da qualidade de vida, os serviços de saneamento impactam
diretamente na valorização dos setores imobiliário e turístico.

A melhora da qualidade de vida e o cuidado ambiental é outro benefício entregue a partir da expansão da infraestrutura de coleta e tratamento de esgotos. A atuação em todo o ciclo da água, do tratamento e fornecimento da água de qualidade para o consumo, passando pela coleta e tratamento deste efluente para devolvê-lo em condições adequadas ao meio ambiente, traz em si o conceito da circularidade e da sustentabilidade do consumo de recursos naturais.

Estudos recentes das Universidades de Nova York e de Hong Kong comprovam
que a despoluição de rios urbanos é um dos principais fatores para eliminação de gases de efeitos estufa. Assim, se não bastassem todos os benefícios a nível
local, o saneamento contribui também para o planeta e é solidário com as
gerações futuras. O projeto de despoluição do rio Pinheiros que a Sabesp executa
sob a coordenação da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Governo
de São Paulo, em parceria com outras entidades, é um bom exemplo desta visão
integral e holística, a serviço daqueles que mais precisam e de todos nós na
verdade.

Ainda nesse contexto, o saneamento possibilita a adoção de outras iniciativas
baseadas na economia circular, a exemplo daquelas adotadas pela Sabesp para a
transformação do gás biometano em biocombustível veicular, do lodo em
fertilizante agrícola e tijolos e do esgoto em água de reuso para fins urbanos e
industriais. O esgoto tem se provado ser verdadeiro diamante que, se bem
lapidado, pode brilhar e iluminar muitas realidades.

Em um ambiente suscetível a mudanças climáticas e à ocorrência de eventos
extremos, é também importante considerar o saneamento como um sistema
interligado – seja na terra, na água ou no ar. A teoria dos rios voadores enunciada pelo professor Carlos Nobre nos ensina que cuidar da Amazônia é fundamental para que o regime de chuvas na região Sudeste do Brasil seja mais regular e abundante. E esta questão é mais que central em um momento que a Suprema Corte brasileira se debruça sobre esta temática. A preservação da Amazônia é fundamental para o Brasil e para o planeta em termos de frear as alarmantes mudanças climáticas que se aproximam, conforme recente relatório do IPCC, que demonstra o risco para todos os seres vivos.

É um momento importante e único. Tempo de soluções. Tempo de olhar para
dentro e para cima, como nos lembra recente filme. Tempo em que poderemos
mudar nossos velhos hábitos e paradigmas em prol de um propósito nobre com
plenitude e prosperidade, abundância e sustentabilidade. Esta realidade somente
se fará presente com a preservação do meio ambiente e, no caso específico, da
Amazônia. Urge a conservação da floresta em pé e das águas da Amazônia com o
respeito aos povos tradicionais de ontem e de hoje. Imaginar um futuro assim
demanda mudança de ações no tempo presente. E o saneamento faz parte deste
enredo.

A reflexão sobre a importância desses e uma série de outros temas de grande
potencial para nossa retomada econômica e social estarão em pauta no evento
“Os Desafios do Desenvolvimento: O Futuro da Regulação Estatal”, a ser realizado
de 18 a 21 de abril pelo Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe).

Será uma oportunidade para difusão de conhecimento, troca de experiências e
qualificada reflexão conceitual para a construção de caminhos direcionados aos
avanços necessários em meio às transformações impostas pela revolução digital,
a pandemia da Covid-19 e agora a guerra.

Em março de 2022, em Dacar (Senegal), na 9ª edição do Fórum Mundial da Água,
junto com o professor Benedito Braga e Dante Ragazzi Pauli, da Sabesp, tivemos a
oportunidade de debater e aprender sobre a segurança da água para a paz e o
desenvolvimento.

Em março de 2020, o papa Francisco protagonizou em uma praça de São Pedro
vazia uma das mais marcantes celebrações de nosso tempo. Lembrou-nos que
todos vivemos em um mesmo barco e que não podemos deixar ninguém para
trás. Que nestes tempos de quaresma em que lembramos daquele que trouxe luz
e esperança para o mundo, possamos refletir sobre as verdades básicas dos
nossos tempos. Tenhamos esperança e fé e comecemos pelo básico: o
saneamento, a paz e o outro como um irmão, afinal a separação é uma grande
ilusão.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Adriano Stringhini

Diretor de Gestão Corporativa da Sabesp e Vice-Presidente do Conselho Deliberativo da Aberje

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