31 de março de 2022

A irresistível ambiguidade das palavras

*Publicado originalmente no LinkedIn em 28 de fevereiro de 2022

Recentemente retomei o hábito de ler frequentemente o principal jornal romano, o la Repubblica, que divide com outro veículo italiano, o milanês Corriere della Sera, a liderança e a tradição de provocar diálogos profundos na Itália a partir do jornalismo.

Sua ótima editoria de cultura me fez encontrar o brilhante artigo de Marco Belpoliti, que trata das polemicas atuais acerca do uso da linguagem e a ambiguidade das palavras.

Num dos trechos, é trazida a história do dia no qual Ludwig Wittgenstein estava discutindo com o economista italiano Piero Sraffa, um dos gênios do século XX. Enquanto o filósofo defendia, assim como consta no seu Tractatus logico-philoshophicus, que a linguagem deve ser o espelho do mundo, Sraffa teria colocado a mão sobre seu queixo e feito o gesto típico dos napolitanos: e quem se importa ca… Tendo então perguntado ao seu interlocutor: “Qual é a lógica disso?”

Após esse episódio, teria então nascida a revisão da primeira obra e a publicação das Pesquisas Lógicas, na qual Wittgenstein formulou a ideia do “Jogo Linguístico”. Dizendo de forma direta: o que realmente importa é o uso que se faz da linguagem. Como explica o filósofo, não se pode restringir os infinitos usos possíveis das palavras.

Essa forma de pensamento lógico está alinhada ao Senza distinzioni (Sem Distinções), novo livro do jornalista e semiólogo Stefano Bartezzaghi, onde, com muita perspicácia, o autor aborda de peito aberto uma das questões políticas mais polemicas da atualidade; qual linguagem podemos ou deveria se usar e ser falada em uma sociedade realmente paritária?

“Bastará fazermos a palavra “raça” se tornar proibida na Constituição Italiana para desaparecerem os racistas? “Quem fala mal, pensa mal e vive mal” é uma forma de expressão sensata ou somente um desabafo violento de uma pessoa neurótica? As palavras são mesmo tão importantes?”

É através de perguntas como essas, que Bartezzaghi procura os pressupostos das ideias que vão se difundindo em relação a linguagem e os modos com os quais são representadas as relações sociais. Atravessa desse modo os territórios dos tabus, estereótipos, identidades, categorias e distinções, questionando sobre a devida proteção da língua e sobre a força e o poder da palavra.

Nascido em Milão em 1962, Bartezzaghi estudou semiótica na respeitadíssima Universidade de Bologna nos anos 80 e é atualmente professor na IULM de Milão além de escritor e colunista de importantes veículos.

A linha racional do autor defende que muito mais importante é entendermos mais sobre linguagem e termos maior clareza de que palavras ofensivas em um certo momento, se tornam totalmente inofensivas com o avançar do tempo e da cultura. Como por exemplo, a discriminação inclusive física que existiu com os canhotos até duas gerações atrás, sendo até mesmo agredidos para que passassem a escrever com a mão direita, enquanto que usar a esquerda era algo quase diabólico: “não foi o sindicato dos canhotos, e sim a evolução cultural que se deu conta de que não se tratava de algo de ordem religiosa, e sim, de algo puramente supersticioso”.

“Querendo seguir todas as novas regras que surgem, arriscamos a não dizer mais nada”

Em tempo de politicamente correto, é fácil cair em alguma gafe e não saber mais quais palavras devemos usar.  “Querendo seguir todas as novas regras que surgem, arriscamos a não dizer mais nada. Eu não aprovo o expurgo da língua. Se eliminássemos a palavra raça da Constituição Italiana, como conseguiremos afirmar que um delito tem um agravante visto que inclui caráter racista? Na minha opinião, parece que em nome da inclusão, tentam estabelecer e introduzir interdições: e chegado a esse ponto devo defender que não é verdade que as palavras sejam assim tão importantes.  Nós temos uma ideia da palavra como uma etiqueta aplicada em algo, mas a linguagem não funciona dessa forma.”

O autor ainda defende que é necessário evoluirmos e sermos menos superficiais nesse debate, e entendermos que não é através da interdição de palavras que mudamos a mentalidade e a cultura. Como exemplo, uma outra sua obra traz situações interessantes em relação aos significados completamente diferentes de palavras ou expressões e como a simples alteração do contexto ou gênero pode representar elogio ou uma interpretação de ataque a honra;

Um homem fácil (de se lidar) vs Uma mulher fácil

Um homem disponível (gentil) vs Uma mulher disponível

A palavra ambiguidade vem do latim e significa “conduzir ao redor”; o seu significado originário é: “ser discordante”, que por definição remete à busca pelo diálogo respeitoso sem interdições.

Voltando ao contexto do artigo de Marco Belpoliti no la Repubblica, muito mais razoável do que simplesmente tentarmos interditar a língua, precisamos entender a ambiguidade e a profundidade que o tema envolve. A palavra ambiguidade vem do latim e significa “conduzir ao redor”; o seu significado originário é: “ser discordante”, que por definição remete à busca pelo diálogo respeitoso sem interdições. O livro do semiólogo Stefano Bartezzaghi nos ajuda a pensar e falar com mais consciência dos problemas que as nossas palavras inserem no Mare Magnum da ambiguidade no qual vivemos imersos.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Giuliano Michel Fernandes

Head Global de Marketing e Comunicação da CBMM. Formações em Engenharia de Produção e Teologia. Especializações em Inovação, Administração, transmedia e técnicas narrativas em ambiente de guerra. Mestre em Business Ethics pela Universidade Vaticana San Tommaso d'Aquino. Carreira profissional nos setores automotivo e de materiais, tendo atuado por 10 anos no exterior em países como Itália, Índia, China e Romênia.

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