Sejam bem-vindos, novos “barnabés”
No futuro, quando o Brasil estiver livre das mazelas seculares que engessam sua plena evolução, haverá nessa crônica um espaço para duas contribuições da pandemia de Covid-19 ao processo.
A primeira delas, já largamente disseminada, foi a descoberta – e simultânea conscientização – sobre a importância de um serviço público como o nosso Sistema Único de Saúde (SUS) em qualquer sociedade justa e civilizada. O seu heroísmo, apoiado no conceito igualitário da saúde universal para todos cidadãos, revelou como os constituintes de 1988 foram sábios em introduzi-lo em nossa Carta Magna.
O segundo tópico da contribuição se refere à magnífica resposta (leia-se particularmente dedicação) que os trabalhadores da saúde estão dando ao tsunami de dificuldades trazido pela pandemia, nas quais se inclui o incompreensível entulho do negacionismo espalhado pelo caminho. Nós já podemos confiar que possuímos uma comunidade pronta a agir, em larga escala, para defender a população diante de adversidades. Aliás, de certo modo, o espírito dessa mobilização já dera seus sinais em recentes tragédias isoladas, como os pavorosos incêndios no Brasil Central e a tragédia de Brumadinho. Em ambas situações, apesar da precariedade de recursos, ficou evidente o desassombro e o empenho responsáveis e generosos.
Assistimos a cenas extraordinárias como o resgate da onça pintada com as patas em carne viva por efeito das brasas, posteriormente devolvida sã e salva à natureza. Ou trabalhadores humildes, enfrentando e batendo o fogo com o que tinham nas mãos. Ou equipes do IBAMA improvisando ninhos para os tuiuiús no topo das árvores e até de postes, pois as chamas haviam consumido suas casas. Vimos ainda os grupos de socorro procurando incessantemente, por vários meses, os corpos desaparecidos na avalanche de lama em Minas Gerais. As pessoas atuavam como se cumprissem uma missão, um compromisso junto ao país. Repete-se agora a feliz experiência com nossos profissionais de saúde – foi algo promissoramente novo na minha sexagenária existência. Não se trata, portanto, de apenas homenagear aqui todos os trabalhadores no sentido de apresentar um merecido preito de gratidão, mas, sobretudo, de reconhecê-los como pioneiros de um salutar e imprescindível engajamento que, honestamente, jamais havia visto.
Os novos ares sopram particularmente sobre o nosso funcionalismo público. Brasileiros acima dos 65 anos haverão de lembrar da má fama que cercava essa categoria desde os tempos coloniais. As marchinhas carnavalescas e os humoristas, a licenciosidade das nossas repartições num limite que estigmatizou o setor. Havia justificativa para a generalização, enraizada nas circunstâncias: não havia concursos meritocráticos de modo que os servidores eram indicados por políticos e/ou figuras proeminentes, sem esquecer o nepotismo. Tais distorções lhes davam costas largas, inclusive para não comparecerem aos postos de trabalho. Porém o fogo no Pantanal e o enfrentamento da Covid-19 denotam que os tempos são outros e que cumpre a todos brasileiros consolidá-los através do respeito e da quebra do estigma.
Tudo sugere que estamos caminhando para formar uma burocracia inteligente e competente que é essencial para qualquer país funcionar bem. Os sinais estão diante de nós, entre os quais destaco a feliz experiência paulista dos Poupatempo, das praças de atendimento e dos juizados de pequenas causas. São frequentes os elogios que ouço de amigos e parentes que foram bem atendidos. Aliás, são extensivos à chamada “xepa da vacina”, que significativamente avança após o expediente dos pontos de vacinação sem provocar mau humor nos funcionários. Muito pelo contrário.
(*) Barnabé foi uma designação criada, e rapidamente popularizada nos anos 1940, para apelidar funcionários públicos, em geral. De início, embora pejorativa, a designação referia-se somente à origem humilde dos funcionários, mas acabou por referir-se ao então descaso predominante.
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