Novas digressões sobre o velho ofício
Em férias, na virada do ano, o ócio produtivo me permite, mais uma vez, refletir sobre o exercício da comunicação corporativa e o seu sentido para o conjunto da obra e da história. Rendo-me ao insight inicial, anterior a qualquer dilema, e isento-me do emblema profissional: como jornalista, não passo de um cozinheiro do cotidiano, desses que trabalham em cozinha industrial e servem bandejões. No lugar da grande panela de pressão, um disparador de releases, como uma rotativa moderna, sem chumbo ou tinta, pseudointerativa. Nada como um pouco de pretensão para nos atirar de volta à manjedoura da realidade.
Na atividade corporativa, a escrita em 90% dos casos não extrapola sua função intermediária, no seu sentido literal – entre meios – e também extensivo, diária, formatada para audiências carimbadas com a estampa do patrocinador. Não importa a editoria, nem a audiência. Tudo é embalado com o apelo da marca, produto ou ideologia, para compor os gráficos de monitoramento.
Seria, então, o comunicador um instrumento subserviente e acrítico do sistema, ao contrário do que pregam os mestres e consultores? Penso no passado e olho para os lados, na tentativa de avaliar o que é avanço e retrocesso. Certo é que não estamos no mesmo lugar. O mundo está bem pior em muita coisa. Nossa sociedade produz mais lixo do que bem-estar. A dialética do progresso tem sido um passo adiante e dois atrás.
Refaço o flashback e foco na perspectiva otimista: também é certo que poderia estar bem pior. Não desconsidero os avanços incontestáveis que nos trouxeram, por exemplo, as inúmeras aplicações da tecnologia. Mas tecnologia, na lógica econômica, não significa a liberdade em si. Se o tempo, com sua aceleração transformadora, não traz o poder criativo que enfim nos libertará, onde está a força do que fazemos?
Por minha própria deformação, sugiro creditar um bom quinhão de valor na conta da resistência, entendida como o sistema imunológico do próprio sistema. Nesse sentido, é um grande avanço no exercício profissional. Comunicadores, quando resistentes, são os anticorpos que se espalham no tecido social como vacina contra os impulsos destrutivos, espontâneos ou deliberados. Em termos de sustentabilidade ambiental, por exemplo, a resistência é uma arma conservadora ultramoderna, porque preserva. Como força política disforme e apartidária, a resistência poderia ser apresentada nos auditórios como a decantada opinião pública, mas de fato é apenas uma parte dela, e geralmente a parte “do contra”, embora presente nos mesmos aparelhos ideológicos que compõem o sistema, como a imprensa, o judiciário, a academia, as igrejas, os congressos e as diversas instâncias de representação formadas na democracia.
Não poderia ser diferente. Somos milhões de pessoas nesta cidade, e bilhões nesse mundo que se expande e se exaure ao mesmo tempo, desde sempre e cada vez mais veloz. Cada um é um indivíduo e também membro das comunidades com as quais se identifica. Como categoria, os resistentes estão em todas elas, por profissão ou militância, desorganizados como convém. “Mas há milhões desses seres / que se disfarçam tão bem / e ninguém pergunta / de onde essa gente vem”. Assim Chico Buarque descreve as crianças que comiam luz, na música “Brejo da Cruz”, e que “assumem formas mil” e se espalham pelo mundo como gente do povo. Não só os loucos, mas também jardineiros, guardas noturnos, sanfoneiros, operários, garçons.
A resistência, diferentemente da resiliência (característica recém-convertida a virtude de carreira), é o sentido da luta, o alimento da própria força, pura lei da física: ação e reação. Pensando assim, quero me dedicar cada vez mais ao ofício de cozinheiro industrial, fazedor diário da sopa de letras que alimenta de luz as crianças daquele surreal e onipresente Brejo da Cruz.
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