Esperando Obama – e Godot
A grande comunicação de governo é feita pela propaganda, aliada às redes digitais de comunicação e muita alegoria. Os meses de preparação e o recente rito de posse de Obama à presidência dos Estados Unidos comprovam isso.
Propaganda entendida como a comunicação de mensagens de caráter governamental, partidário, religioso, entre outras, ligadas às instituições, e voltada para conquistar e comprometer corações e mentes em âmbito global. A partir daí, mudar e alinhar comportamentos, levantar esperanças, definir missões, apresentar visões, configurar imagens, colher reputações.
Na Primeira Guerra Mundial…
Bom exemplo de uso da propaganda é a campanha para aprovação da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, criada por Walter Lippman e pelo sobrinho de Sigmund Freud, Edward Bernays, considerado o pai das modernas relações públicas. É de Bernays o conceito do ‘consenso fabricado’, utilizado para massificar, pelos meios de comunicação tradicionais e digitais, a ideia geralmente negativa que um povo tem sobre outras culturas, comportamentos ou grupos, por exemplo, como de imigrantes. Mas não se tenha má impressão da propaganda. Pelo contrário, lembre-se de que ela também é usada para a difusão de ideias contra o preconceito e outras causas, de relevância pública.
A comunicação empresarial é que, normalmente, apropria-se debilmente de processos e técnicas da propaganda na disseminação do ideário de empresas. E, quando o faz, geralmente, não ultrapassa expressões pobres e autoritárias como a que determina aos empregados: ‘vestir a camisa da empresa’.
Na Segunda Guerra Mundial…
Vieram à tona aprendizados acumulados em suas investidas e ações de dominação materiais e simbólicas de Alexandre, César e Napoleão, à frente de seus exércitos e Estados. Hitler e Mussolini, com seus maus modos, tentaram ligar-se ao imaginário da Grécia e Roma. Stalin e Churchill também usaram a mitologia local para construir diques de contenção dos efeitos psicológicos negativos dos resultados sobre os ingleses e soviéticos. O mito da Grande Mãe-Rússia – ‘protetora de todos os povos eslavos’ – solidificou um exército ainda mal arrumado nas primeiras batalhas contra os nazistas.
É conhecida a forma como os norte-americanos, na Segunda Guerra Mundial, quiseram envolver os brasileiros com seu imaginário tipo Disneylândia. Zé Carioca é produto dessa propaganda e Carmen Miranda, que chegou aos Estados Unidos em 1939, encontrou no ambiente bélico dos anos 1940, vento a favor para sua carreira, soprado pela Política de Boa Vizinhança norte-americana, com vistas a reforçar laços com seus aliados, entre eles os brasileiros.
Na Guerra Fria…
Foram produzidas centenas de filmes nos quais os comunistas são sempre maus. De James Bond às imagens fabricadas para repercutir na mídia mundial, como a foto picaresca de Nikita Kruschev, em 1960, na ONU. Nela, em meio a um debate acalorado sobre as relações URSS e EUA, o dirigente soviético golpeou a mesa com o sapato. A premeditação do gesto foi desvelada por uma foto da revista Paris Match, que mostra, no momento da sapatada, Kruschev com os dois pés calçados. Ou seja, o levou em um envelope.
Na América do Sul…
Hugo Chávez, na Venezuela, recorre a citações do libertador da América Latina, Simon Bolívar, ao acolhimento de Fidel Castro e ao apadrinhamento de vizinhos pobres como Bolívia e Equador.
No Brasil, Lula constrói sua mitologia tendo como referência Getúlio Vargas. Em abril de 2006, reutilizou a célebre imagem de Vargas com as mãos lambuzadas do primeiro óleo extraído do solo brasileiro, para marcar a conquista de nossa auto-suficiência em petróleo. Além disso, o uso de bonés de organizações de trabalhadores, o apoio a programas como o ‘Bolsa Família’, indicam a vontade de ser mais um ‘pai do povo’. Até afirmações como ‘não gostar de ler jornais’, os tropeços verbais, reforçam o mito popular. Como contraponto, Fernando Henrique Cardoso não conseguiu construir sua narrativa mitológica a partir do fato de ser um intelectual poderoso e internacionalmente reconhecido.
Na América do Norte…
Bush, em seus dois governos, deixou de lado o exercício do poder feito pelas narrativas e comunicação inteligentes sobre outros povos. Optou por não se preocupar em ganhar corações e mentes. E, justamente, em meio a essa terra simbólica destruída, surge Obama, com uma narrativa ímpar, construída desde o tempo de estudante. Seu primeiro livro, ‘A Origem dos Meus Sonhos’, foi escrito aos 33 anos e conta sua história até o ingresso na Escola de Direito de Harvard. Exemplares autografados da primeira edição são comercializados hoje por mais de 20 mil dólares. Sua história o liga às organizações não-governamentais, ou seja, longe do mundo corporativo, e cuja falta de experiência de gestão de empresas é mais um filtro que o distancia do universo simbólico do Fórum de Davos e o aproxima do Fórum Social, realizado este ano em Belém, no Pará.
Barack Husseim Obama é um nome de muitas origens e os contadores de histórias não deixam de usar esse fato: ele é interpretado como pós-étnico e, com os pés em duas ou mais pontas, permite ser rotulado como tribal, do Quênia, ou digital, do Blackberry e dos sermões do YouTube. Um ser 2.0. Mas, é também tradição: como um Jano mestiço, parte da cabeça mira Abraham Lincoln, sua mulher e suas duas meninas, o Ronald McDonald´s; a outra, monitora a crise financeira, o aquecimento global. Sua máquina de propaganda, agora estatal, usa e abusa de recursos alegóricos. Não se surpreenda se ouvir, em breve, na Sapucaí a trajetória de Obama no enredo do samba de uma escola carioca.
Para se aproximar dos mitos
A alegoria é uma linguagem que nos aproxima dos mitos. A convivência real com os deuses é, para os simples mortais, quase impossível, exige um aprendizado voltado para os rituais, tarefa para sacerdotes, monges e os donos do cerimonial.
Para se chegar ao alto, no ambiente celeste, morada dos deuses, é necessário mais do que seguir manuais, que ensinam a subir escadas, acertar as horas, disparar mísseis. Falar com os deuses, parece, exige que se estabeleça um tipo de comunicação com alguns mortos, se possível, por meio de seus objetos, ao retrilhar seus caminhos, repetir suas palavras, recriar seus contextos. Por isso, Obama transita pelos mitos fundadores norte-americanos, pelos seus heróis, pelos seus trajes, objetos e percursos. Os deuses, os mitos, os heróis são narrativas prontas para serem massificadas, porque são abertas: cada um lê o que quer.
A alegoria é uma metáfora densa de signos, que se coloca entre a interpretação de cada um e os objetos, que flutuam no mundo dos deuses. De certa forma, a alegoria é uma narrativa institucional, por isso mediada – advinda dos xamãs, dos terreiros, das igrejas, dos governos e outros elementos, que detém poder e impedem o acesso direto aos seres divinos. Afinal, uma experiência direta, com o que acontece no alto, aceleraria insuportavelmente a decepção para os simples mortais.
A construção mítica de Obama o aproxima, cada vez mais, de um personagem de Samuel Beckett, dramaturgo, romancista e poeta irlandês: Godot, que nunca chega e não é decifrável por inteiro. E, em nossa realidade, cada dia mais desfolhada, imóvel, passiva, como a árvore e os personagens da peça de Beckett, continuaremos esperando Obama.
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