As fotos e os fatos
A história do fotojornalismo é quase um relato cotidiano de tensão entre a imagem produzida no contexto de um acontecimento e a propaganda. Tensão que transforma a produção, a utilização e o uso da imagem de desgraças, em componentes de um processo político, que sabemos cada dia mais teatralizado, e que tem aumentado a desconfiança social em relação às representações que chegam até nós por meio de inúmeras mídias, cada dia mais contaminadas por missões propagandísticas. A produção fotojornalística originária de conflitos como o que envolve atualmente Israel e o Hamas nos fornece bons exemplos da complexa relação entre jornalismo e propaganda ideológica.
Neste contexto, o leitor geralmente não detecta a produção e o uso propagandístico do fotojornalismo, isso em virtude de sua natureza carregada de um apregoado realismo que esconde que esse tipo de produção é mediado por um autor, que geralmente assina as fotos, pressionado, como qualquer um de nós, por responsabilidades, autoridade, valores e interesses. E, muitas vezes, protagonista do acontecimento narrado pelo seu trabalho.
No ambientes conflagrados das guerras é quase impossível separar o fotógrafo, a sua visão de mundo e o seu protagonismo, de seu trabalho. Diante disso, a mídia democrática deveria, tal qual faz com aqueles que produzem o jornalismo interpretativo e opinativo, identificar o fotógrafo e as sua visão de mundo.
Sobre a produção fotográfica e suas influências, Boris Kossoy, professor da ECA-USP, em seu livro Fotografia & História, chama a atenção sobre ‘a deformação intencional dos assuntos através das possibilidades de efeitos ópticos e químicos, assim como a abstração, montagem e alteração visual da ordem das coisas, a criação enfim de novas realidades têm sido exploradas constantemente pelos fotógrafos’.
A partir desta perspectiva apresentada por Kossoy, as fotografias podem ser construídas a partir de ‘uma proposta dramática, psicológica, surrealista, romântica, política, caricaturesca etc’. Estas possibilidades de construção apontam que ‘qualquer que seja o assunto registrado na fotografia, esta também documentará a visão de mundo do fotógrafo. A fotografia é, pois, um duplo testemunho: por aquilo que ela nos mostra da cena passada, irreversível, ali congelada fragmentariamente, e por aquilo que nos informa acerca de seu autor’.
Proximidade e distanciamento
Como exemplo, Robert Capa – o célebre autor da foto ‘Muerte de un soldado republicano’, produzida no ambiente da guerra civil espanhola, em 1936, e da foto Dia D, de 1944 – destacava o caráter missionário e de testemunho político destes tipos de produções. Foi Capa que afirmou: ‘Se as suas fotos não suficientemente boas, é que você não está suficientemente perto’. Este tipo de proximidade do objeto a ser fotografado levou Capa à morte em 1954, em Thai-Binh, no Vietnã.
A proximidade dos acontecimentos pode levar a captura do instantâneo que pode representar com grandeza uma narrativa histórica. Capa adotou a proximidade como método. O perigo é que a proximidade dos acontecimentos pode também levar a perda de um distanciamento necessário para a produção de um jornalismo por meio de imagens. O jornalismo e seus meios quando perdem o distanciamento, quando se torna protagonista, se transforma em propaganda. A foto ‘Muerte de un soldado republicano’, de Capa, é objeto de muita controvérsia. As dúvidas sobre a veracidade do instantâneo de Capa partem principalmente daqueles que não gostavam da visão de mundo do fotógrafo.
Alfred Eisenstaedt tem também a sua célebre fotografia ‘Dia V’, de 1945 – belíssimo registro de um beijo para lá de quente, capturado durante o desfile comemorativo da vitória na Segunda Guerra Mundial dos marines norte-americanos, em Times Square, Nova York – colocada também entre os trabalhos questionados em seu status de instantâneo jornalístico.
Vale destacar que os trabalhos de Capa, citados neste texto, exaltam, por sua epidérmica proximidade com os acontecimentos, o sacrifício dos soldados fotografados e de maneira indivisível o do próprio fotógrafo. O trabalho de Edgerton expressa um projeto de dias felizes para os humanos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Programa de propaganda amplamente trabalhado pela máquina norte-americana de comunicação no ambiente da Guerra Fria.
Nos dias atuais, no vale e tudo das guerras e das violências urbanas, as imagens jornalísticas de destruição de corpos humanos, de suas casas e de suas cidades produzidas em escala industrial trazem em sua construção propostas de seus autores, que democraticamente deveriam ser expressas para os leitores – cada vez mais transformados em uma massa dócil e contemplativa (por meio do registro fotográfico e da produção audiovisual) das ações desencadeadas por chefes políticos e senhores das guerras, que manipulam símbolos e alegorias também como armas em suas estratégias criadas a partir de interesses políticos e econômicos.
As bandeiras de Delacroix, Reichstag, Iwo Jima e Hamas.
As edições de 1º de janeiro da Folha de S.Paulo e de O Estado de S.Paulo trazem uma foto de Mohammed Saber, da agência EFE , publicada ao lado das manchetes principais das duas publicações que relatavam naquele dia os acontecimentos em Gaza. É uma foto dramática, cenográfica, que mostra um palestino colocando uma bandeira esfarrapada do Hamas no alto de escombros ao lado de uma mesquita em Gaza. Reforçando o que se vê na foto de Saber, a palavra destruição faz parte das legendas da Folha e do Estado. A imagem claramente revela a proposta política de seu autor e não há nada de errado nisso. O problema jornalístico que se coloca para os editores dos jornais paulistanos e para os seus leitores é que nada sabemos do que imediatamente está fora da foto. Em assuntos complexos como o de Gaza, os relatos fotográficos não deveriam ser tratados apenas a partir do que se vê dentro de uma moldura, apenas dentro de um enquadramento e de uma edição que privilegia o mundo visto e analisado em partes.
São inúmeras as questões geradas por fotos em ambiente de conflito, coincidentemente tendo bandeiras como protagonistas fundamentais na narrativa de vitória e resistência. Fotografias guerreiras que parecem beber a sua influência cenográfica na conhecida pintura de Eugène Delacroix, La Liberté guidant le peuple, de 1830, onde a bandeira francesa tremula sobre os vivos e os mortos.
Um exemplo clássico deste tipo de narrativa visual intencionalmente dramatizada é a foto de Joe Rosenthal, na qual militares norte-americanos do 28º regimento erguem a bandeira norte-americana no alto do monte Suribachi, na ilha japonesa de Iwo Jima. O que foi apresentado ao mundo como fotojornalismo era uma peça de propaganda. O assunto foi trabalhado em um dos últimos filmes de Clint Eastwood. Outro exemplo de manipulação é a foto de soldados soviéticos içando, em 30 de abril de 1945, a bandeira da União Soviética no alto do edifício do Reichstag em Berlim. Ela também uma eficaz produção de propaganda travestida de fotojornalismo para ser usada nos embates da Guerra Fria.
A fotos guerreiras de Iwo Jima e do Reichstag não se sustentaram como fotos jornalísticas. Personagens que participaram das montagens acabaram por revelar os scripts que nortearam a produção daquelas fotografias. Outro aspecto, contrariando o que recomendava Capa, os fotógrafos estavam exageradamente próximos.
No conflito entre Israel e os palestinos, as fotos produzidas, a partir de planos fechados e closes, pelas máquinas de comunicação e de propaganda dos dois lados deveriam ser vistas, até prova em contrário, pela mídia democrática e pelos leitores como retórica de guerra. Lamentavelmente, neste contexto, a foto de Mohammed Saber pode ser mais uma componente da crescente desconfiança gerada pelo jornalismo com alma de propaganda.
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