“Organizações que curam enfatizam a importância da responsabilidade moral individual, criando sistemas e seguindo políticas que promovem e premiam a imaginação e a ação heroicas.” (Raj Sisodia e Michael Gelb, no livro “The Healing Organization”)
Enquanto transcorre a última década para o alcance das metas da Agenda 2030, abraçadas por tantas de nossas organizações, somos cada vez mais confrontados com a urgência de ações efetivas. As empresas comprometidas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) vêm enfrentando uma agenda desafiadora, que inclui metas ambiciosas, processos de profunda transformação cultural e um cenário em que mudanças constantes convivem com uma única certeza: a de que não é mais possível conduzir os negócios como antigamente. A evolução é acompanhada de perto por indicadores precisos – números que, graças à evolução de nossas tecnologias, são monitorados cada vez mais minuciosamente. E movendo os ponteiros de cada um deles, lá estamos nós: profissionais que sonham e constroem realidades. Seres humanos. Diversos. Com desejos, medos, inseguranças, necessidade de reconhecimento e de um propósito que dê sentido a essa misteriosa aventura que chamamos vida. A pergunta que fica é: o que nossas empresas têm feito para acolher tudo isso, trazendo para o jogo o que nos faz capazes de mudar o mundo?
No livro “The World is as you Dream it”, o economista e atual ativista ambiental John Perkins relata um diálogo com Numi, um xamã sul-americano com o qual se encontra em uma de suas muitas expedições pela Amazônia. Questionando-o sobre os impactos negativos do desenvolvimento econômico desenfreado, Perkins indaga se ele acredita que “seu povo” teria perdido a habilidade de amar. E Numi responde: “Vocês não perderam a habilidade. O mundo é como você sonha. Seu povo sonhou com fábricas enormes, arranha-céus, tantos carros quantas gotas há neste rio… Agora vocês começam a ver que seu sonho é um pesadelo. Tudo que vocês precisam fazer é mudar o sonho. Isso pode ser alcançado em uma geração. Vocês só precisam plantar uma semente diferente. Ensinem suas crianças a sonhar novos sonhos”.
No centro de toda transformação, está um sonho humano. Para o bem ou para o mal. Afinal, somos criaturas de luz e de sombra. Aquilo a que nos dedicamos, as pessoas com quem convivemos e os ambientes nos quais atuamos têm o poder de despertar o melhor ou o pior em nós. Por isso, não há como empreender uma transformação da magnitude da que nos propõe a Agenda 2030 sem olharmos com cuidado para nós mesmos, e para o que estamos despertando ao nosso redor.
Aos poucos, começa a emergir a consciência de que a liderança, também, deve ir além dos números. Se um de nossos maiores desafios atuais é justamente integrar as visões financeira, social, ambiental e de governança em nossos negócios, como imaginar que, no dia a dia de nossas organizações, podemos abrir mão da integração, olhando humanos que sonham como meros executores de tarefas? E, embora um ambiente seja reflexo de todos os que o compõem, é inegável o papel da liderança ao estabelecer as bases sobre as quais um grupo se assenta: que comportamentos são valorizados e premiados? Que valores são inegociáveis? Que atitudes não são toleradas? No espaço em que a prática confronta o discurso, o que sobressai é o exemplo – mas que exemplo?
Já sabemos que cada vez mais profissionais, sobretudo das novas gerações, se conectam a empresas cujos propósitos e valores façam sentido em suas jornadas pessoais. Mas a questão vai bem além disso. Propósito é essencial. Por que fazemos o que fazemos é, sim, parte importante da nossa conexão com o trabalho. Mas o modo como fazemos tem um significativo poder de influência sobre como nos sentimos – consequentemente, sobre aquilo que somos capazes de realizar.
Nesse sentido, chama a atenção o recrudescimento de transtornos como depressão, ansiedade e estresse, bem como sua relação com o mundo do trabalho. No início de 2022, a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu oficialmente a síndrome de burnout na lista de doenças relacionadas ao trabalho. No Brasil, os números são significativos. Em pesquisa global do Instituto Ipsos, 53% dos brasileiros relataram alguma deterioração na saúde mental em 2020, representando a quinta maior alta entre 30 países pesquisados. Já pesquisa da Oracle realizada também em 2020 apontou que 84% dos brasileiros afirmaram acreditar que suas empresas precisam fazer mais por sua saúde mental, contra 76% dos entrevistados nos demais países. Os brasileiros relatam, ainda, importantes fatores estressores diários no local de trabalho, como pressão para atender aos padrões de desempenho (44%), tarefas rotineiras e tediosas (46%) e cargas de trabalho imprevisíveis (39%).
Sim, temos metas que nos direcionam para a construção de um mundo melhor. Mas estamos lutando por elas em ambientes que, por vezes, ainda falham em despertar o que há de melhor em nós. Por isso, é urgente que olhemos para nossas relações e para nós próprios – o modo como estamos lidando com nossos medos, com a pressão por resultados, com a necessidade de produzirmos cada vez mais e melhor e com um cenário que se transforma a cada dia, gerando incertezas e insegurança.
Autores de “The Healing Organization”, Raj Sisodia, um dos fundadores do movimento conhecido como capitalismo consciente, e Michael Gelb definem o livro como uma obra inspirada por uma “epidemia de sofrimento desnecessário conectado com os negócios”. Além de uma série de exemplos de organizações nas quais resultados rentáveis e impactos positivos para seus empregados, clientes, comunidades e demais stakeholders caminham de maneira indissociável, os autores traçam um panorama da evolução do capitalismo, evidenciando como as quatro energias arquetípicas básicas foram sendo dissociadas, e os consequentes efeitos nocivos sobre nosso bem-estar físico, emocional e espiritual: “As famílias humanas têm quatro papéis arquetípicos – mãe pai, criança e avô. De modo correspondente, as culturas são fundamentadas e sustentadas por quatro energias fundamentais – masculino, feminino, criança e sábio. Quando saudáveis, essas energias se manifestam sob a forma de conquista, cuidado, alegria e propósito. Cada uma representa uma importante peça complementar do que precisamos para viver vidas saudáveis e cheias de significado e alegria.”
O equilíbrio passa pela integração. Por não deixarmos nada (ninguém) de fora. Passa pela criação de ambientes inclusivos, que valorizam e promovem a diversidade em todas as suas manifestações. Passa pela comunicação consciente, com escuta atenta e diálogo verdadeiro, na qual assuntos sensíveis são tratados com o cuidado que merecem e o silêncio só aparece como sinal de respeito, nunca como evidência de descaso. Passa pelo acolhimento de medos e inseguranças, parte do que nos faz humanos também. Passa por deixarmos para trás as cadeias de comando e controle e assumirmos modelos em que as diferentes visões colaborem para a criação de algo tão grande quanto o que é esperado de nós.
Os desafios que temos pela frente exigem que sejamos dotados de “imaginação e ação heroicas”, como destaca a frase que abre este artigo. Mas, como os próprios autores também ressaltam, heróis e heroínas são (somos) pessoas comuns. Só precisamos estar inteiros para termos consciência disso.
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