19 de agosto de 2016

Heróis na miséria

Fala-se de legado da Olimpíada. Em geral, refere-se a aspectos materiais da competição. o que vai ficar como equipamentos e melhorias para a cidade do Rio de Janeiro. No entanto, há um “legado simbólico” que, segundo a socióloga espanhola Beatriz García, especialista em legado olímpico, é tão importante quanto o material.

Assim,  a simbologia evocada e dramatizada na abertura e encerramento do evento e ao longo das competições seria uma espécie de conceito que o brasileiro tem de si próprio e deseja transmitir para o mundo. Nesse raciocínio, o signo cultural ajudaria na definição de uma nova brasilidade.

Se isso é verdade que os Jogos Olímpicos são um espelho, a imagem do Brasil é antigo. O país pode ser definido como uma arena de estereótipos. Samba, mulheres, miséria, carnaval e futebol reinaram na cerimônia de abertura. No baile infinito do “País Tropical” de Jorge Ben e Regina Casé, todos formamos uma horda de felicidade total. Até nossos heróis são anônimos que se destacam do caos alegre do populacho pelo acaso de suas façanhas.

Ao longo das competições, entrou em cena um recurso verbal recorrente que a mídia usou para explicar os raros atletas brasileiros que ganharam medalhas: a narrativa da superação. Segundo os relatos entusiasmados dos narradores de rádio, TV e internet, o brasileiro que merece figurar entre os maiores do esporte é aquele que segue um roteiro sempre igual: nasce na extrema pobreza, sofre uma tragédia na infância, esforça-se em um sistema de educação horrível e um esquema de patrocínio deficiente, mas, como tem uma genialidade congênita, vence e conquista a glória.

Assim, tornaram-se vitoriosos Rafaela Silva (judô), Robson da Conceição (boxe), Isaquias Queirós (canoagem), Thiago Braz Da Silva (salto em vara). São heróis surgidos na pobreza. Eles não têm nenhum projeto sistemático. Apenas nutrem a convicção da vitória e atropelam os prognósticos. Dois deles – Robson e Isaquias – vieram do sertão da Bahia, o que lhes dá um  toque de romance regionalista. Rafaela cresceu na Cidade de Deus – outro item da mitologia da divertida desgraça nacional. Thiago, órfão e excluído social, foi criado pelos avós e provocou lágrimas na mulher. Todos são imbuídos da missão de elevar o nome do Brasil como país onde os seus protagonistas surgem por geração espontânea.

“Nossa marca é a superação”, repetem os narradores. A maratona da miséria sempre foi e será assim. No moinho dos mitos de conveniência, todo mundo canta e dança eternamente embalado nesse tipo de narrativa que justifica, entre outras inconsistências, a ausência de políticas educacionais para o esporte. Afinal, o brasileiro não precisa de projetos. Ele é o pobre diabo feliz que precisa apenas de sorte e circo para respirar.

 

 

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Luís Antônio Giron

Jornalista e escritor, Doutor em Comunicações e Artes e Mestre em Musicologia pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Trabalhou como editor e repórter especial nas seguintes publicações: Folha de S. Paulo, Veja, O Estado de S. Paulo, Gazeta Mercantil e Época. Como gerente de Multimídia da Fundação Padre Anchieta, reorganizou o portal cmais. Produziu e redigiu documentários e programas na TV Cultura. Livros publicados: Ensaio de Ponto (romance, Editora 34, 1998), Mário Reis, o fino do samba (biografia, 2001), Até nunca mais por enquanto (contos, Record, 2004), Minoridade crítica: folhetinistas diletantes nos jornais da corte (Edusp/Ediouro, 2004), Teatro de Gonçalves Dias (Martins Fontes, 2005) e Crônicas Reunidas de Gonçalves Dias (Academia Brasileira de Letras, 2013).

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