Estante COMUNICAÇÃO EMPRESARIAL · EDIÇÃO 111 · 2024

Uma jornada em busca do pertencimento

Em um mundo destruidor de histórias e memórias, a Trilogia de Jesus, de J.M. Coetzee, nos convida a pensar sobre o que realmente significa ser humano

Paulo Nassar

J.M. Coetzee, o autor sul-africano laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2003, tem uma capacidade singular de explorar a incerteza como uma condição humana. Em sua Trilogia de Jesus, ele mergulha em temas tão antigos quanto a própria humanidade, mas marcados por uma emergência extremamente contemporânea. Seus personagens são migrantes que rompem fronteiras e se movem em paisagens estrangeiras, lugares em que seus nomes, profissões, documentos, línguas e vínculos de origem não valem quase nada. São homens, mulheres e crianças desenraizadas que assumem novas identidades e caminhos. No texto espartano de Coetzee se destacam questões eternas de maternidade, paternidade e filiação.

Simón, o protagonista misterioso e introspectivo, não é o pai biológico de David, criança que ele encontra perdida dentro de um navio de migrantes, mas assume esse papel com uma dedicação que vai além do dever. Essa relação paternal, partilha de amor incondicional e proteção, evoca imagens do “Pai Celestial” das tradições cristãs. No entanto, esta é uma paternidade do século 21: desprovida de dogmas, rica em questionamentos e ancorada no aqui e agora.

Paralelamente, temos Inés. Ela não é a mãe biológica de David, mas, como a Virgem Maria, aceita sua missão materna sem hesitação. Sua relação com David é mais complexa e multifacetada do que a veneração tradicionalmente conferida a Maria. Inés é uma figura materna para um mundo moderno, uma mãe que se permite os desafios e as ambiguidadesda maternidade. Inés e Simón constituem uma família não tradicional.

E, claro, há David. Uma criança extraordinária cuja curiosidade e cuja capacidade de desafiar as normas cotidianas dão a ele uma aura quase messiânica. Embora Coetzee pretenda evitar deliberadamente uma alegoria direta ao personagem bíblico – Jesus é citado apenas nos títulos dos livros da trilogia –, a influência palpável de David na vida daqueles ao seu redor é inegável.

Coetzee, em sua arquitetura ficcional, nos convida a pensar sobre o que realmente significa ser pai, ser mãe e, mais fundamentalmente, ser humano. Em um mundo destruidor de histórias e memórias, sua trilogia serve como um lembrete poético de que a busca por significado, vínculos e pertencimento é o que nos faz humanos.

As paisagens literárias de Coetzee, embora áridas e muitas vezes enigmáticas, estão repletas de questionamentos profundos e desejos humanos universais. E, ao final da jornada, fica claro que o título Trilogia de Jesus não é mero acaso, mas sim uma meditação profunda sobre a natureza do amor, sacrifício e redenção.

 
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