19 de maio de 2016

O lado B é o que importa

Andrea Martins

 

Diante de um novo cenário de consumidores mais engajados e conscientes, da globalização e dos desafios de sustentabilidade para garantir o futuro do planeta, empresas de vários países não estão buscando ser as melhores do mundo, mas as melhores “para” o mundo. Para atestar as boas práticas socioambientais e novos modelos de negócio que envolvem a cadeia de produção, certificados internacionais viraram objetos de desejo – e necessidade – na moderna ordem corporativa.

Selos internacionais de qualidade sustentável como o Sistema B, a “pegada ecológica” do Global Footprint Network ou os relatórios da Global Reporting Initiative (GRI) ajudam o consumidor a reconhecer o engajamento empresarial e agregam valor às companhias (leia o box). “A preocupação com a sustentabilidade é cada vez mais percebida pelos consumidores, mas existe a dificuldade de reconhecer produtos e empresas que atendem a essas necessidades. Os selos de entidades certificadoras ajudam a identificar as boas práticas”, comenta Maurício Turra, professor de sustentabilidade da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e coordenador do ESPM Social Business Centre.

O movimento global das Empresas B (de “benéficas”) quer criar um capitalismo alternativo, no qual o lucro não compõe a única motivação. A ideia é gerar mecanismos para incentivar as empresas a ajudar o planeta e as pessoas, com soluções concretas para problemas sociais e ambientais. “O tema sustentabilidade é relativamente recente”, afirma Guilherme Marback, sócio-consultor da Ockam, consultoria especializada em cultura organizacional, estratégia e governança corporativa. “Mas já existe a percepção de que as empresas que têm futuro são aquelas conectadas a questões socioambientais. Elas serão as preferidas dos consumidores e dos colaboradores. As pessoas querem trabalhar em empresas-cidadãs.”

Guilherme Marback, da Ockam
Guilherme Marback, da Ockam

As companhias com certificado de Empresa B (Benefit Corporation ou B-Corp) formam uma rede com mais de 1.400 companhias em 42 países. O selo surgiu nos Estados Unidos há 9 anos e está no Brasil desde 2013. Por aqui, 42 empresas já fazem parte do seleto grupo, que prioriza o impacto positivo na relação com trabalhadores, fornecedores, comunidade, meio ambiente, governança, e também prioriza transparência. “Hoje, 75% das B-Corps são pequenas e médias empresas, mas o amadurecimento do processo vem atraindo a atenção das grandes”, explica Julia Maggion, diretora executiva do Sistema B no Brasil. “O certificado B é um caminho para melhoria.”

Julia Maggion, do Sistema B no Brasil
Julia Maggion, do Sistema B no Brasil

A Natura foi uma das grandes que buscou o certificado. A fabricante de cosméticos, que fatura mais de R$ 7 bilhões por ano e tem 7 mil funcionários, é a maior empresa B do Brasil – e do mundo – e a primeira de capital aberto. O selo foi conquistado há um ano e o maior desafio foi a alteração no estatuto social da empresa – um dos critérios para a obtenção do certificado –, estabelecendo a necessidade de gerar ganhos também para o meio ambiente e para a sociedade. “A certificação trouxe nova responsabilidade de resultados, uma evolução do que já existia”, diz Marcelo Bicalho Behar, diretor de assuntos corporativos da Natura.

Marcelo Bicalho Behar, da Natura
Marcelo Bicalho Behar, da Natura

 

Menores e mais novas

Em 45 anos de existência, a Natura tem um histórico importante no quesito sustentabilidade. Foi a primeira do setor a usar refil de produtos, ainda nos anos 1980. Na década seguinte, investiu em propaganda com uma nova compreensão da beleza, livre de estereótipos. No início da década de 2000, lançou a linha Ekos, ligada às comunidades da Amazônia e que valoriza a sociobiodiversidade brasileira.

A Natura tem metas definidas de impacto positivo até 2020, além de diretrizes estabelecidas até 2050. Está tudo detalhado no relatório público “Visão de Sustentabilidade 2050”. Membro da comunidade de empresas B, a fabricante já tem negócios com outras certificadas. “Somos uma indústria da nova realidade e algumas empresas B são nossas fornecedoras”, afirma Behar. “Temos um critério de escolha: se uma é B-Corp e a outra não, optamos pela primeira. É um bom critério de desempate.” A empresa está sediada em Cajamar (SP), e tem forte presença na América Latina, e também na França.

A fábrica americana de sorvetes sofisticados Ben & Jerry’s (uma subsidiária da Unilever) é outro exemplo de B-Corp que rompeu fronteiras. Presente na Europa e no Brasil, foi fundada em 1978 em um posto de gasolina em Burlington, em Vermont (EUA), pelos ex-hippies Ben Cohen e Jerry Greenfield, praticando o chamado “comércio justo”: ela compra a maior parte da matéria-prima de pequenos produtores de países em desenvolvimento e o valor pago pelos consumidores ajuda as famílias e comunidades, incluindo melhorias em saúde, educação e moradia.

A B&J rejeita produtos transgênicos e a utilização de hormônios artificias na produção de leite. Outras medidas “do bem” são o pagamento digno aos empregados em começo de carreira e a busca por fornecedores que empregam pessoas com dificuldade de inserção no mercado de trabalho e que utilizam métodos seguros de produção, que reduzem a degradação do meio ambiente. “Promovemos trocas comerciais entre as empresas B”, diz Julia Maggion. “Estamos criando um ‘market placement’ global, patrocinado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para que as B-Corps façam negócio entre elas e com grandes compradores.”

Menores e mais novas, boa parte das empresas brasileiras certificadas pelo Sistema B já nasceram “benéficas”. É o caso da Maria Farinha Filmes, produtora que trabalha, primordialmente, com temas socioambientais. Um exemplo foi o filme Muito além do peso, que trata da obesidade infantil e foi disponibilizado de graça na internet. Mais de um milhão de pessoas foram atingidas diretamente pelo filme, e ele também se tornou material de capacitação para profissionais da educação e saúde no país. “Alguns dos pontos que são importantes para nós são o retorno benéfico de nossos projetos para a comunidade, a valorização da economia local e a preocupação com o meio-ambiente tanto dentro de nossa sede como em todas as gravações externas que realizamos nos filmes”, diz Luana Lobo, sócia e diretora de distribuição híbrida da Maria Farinha.

Luana Lobo, da Maria Farinha
Luana Lobo, da Maria Farinha

 

Relatos do bem

Outra ferramenta de sustentabilidade procurada pelas companhias é o relatório da Global Reporting Initiative (GRI), organização internacional independente, fundada em 1997, pioneira na criação e no aprimoramento contínuo dos relatos corporativos de sustentabilidade. O foco é ajudar as organizações a levarem em conta questões socioambientais em seus processos decisórios. “O objetivo central é mudar a mentalidade ‘financeira’ para uma que abarque também questões socioambientais – e que elementos relacionados à sustentabilidade sejam considerados nas políticas, nos procedimentos e nos processos de tomada de decisão”, afirma Gláucia Terreo, diretora da GRI no Brasil.

Segundo a diretora, do ponto de vista de negócios, esse processo, quando bem implementado pela empresa, ajudará na prevenção de riscos e gerenciamento de oportunidades. No curto prazo, poderá gerar economia de recursos. No longo, trabalhará na manutenção da reputação e credibilidade, ou seja, no valor de mercado da empresa. Os benefícios adicionais são a antecipação de tendências, gestão da informação, melhor diálogo e entendimento com os stakeholders, atração e retenção de talentos, acesso a capital e novos mercados e inovação.

No mundo, já são mais de 28 mil relatórios. No Brasil, são 220 registrados. Entre eles, o “Novo olhar para o futuro”, divulgado pela Fibria, empresa brasileira de base florestal e líder mundial na produção de celulose de eucalipto. O material apresenta estratégias para o próximo ciclo de crescimento da companhia, além do desempenho econômico-financeiro, as ações de responsabilidade socioambiental e a geração de valor na organização e fora dela.

Criada em 2009 a partir da incorporação da Aracruz Celulose pela Votorantim Celulose e Papel (VCP), a Fibria divulgou o relatório preparado de acordo com as diretrizes G4 da GRI (Global Reporting Initiative) e do IIRC (International Integrated Reporting Council), consideradas as referências globais para a produção desse tipo de documento. Em versões on-line e impressa, bilíngue (em português e inglês) e fazendo uso de infográficos para traduzir informações complexas de uma forma agradável aos leitores e internautas, os relatórios da Fibria são reconhecidos por sua excelência. A versão de 2013, divulgada no ano seguinte, foi considerada uma das dez melhores do mundo e a oitava mais criativa, segundo o Corporate Register Awards 2015, que reúne o maior diretório global on-line de relatórios de companhias.

O Relatório 2014 da Fibria é uma importante ferramenta de comunicação para apresentar aos diversos públicos de interesse da companhia – “stakeholders” – as conquistas e desafios da empresa de forma integrada, aliando aspectos econômicos, sociais e ambientais. “Para nós, a reputação é valor real e, por isso, deve ser um assunto presente em todas as dimensões do negócio”, diz José Luciano Penido, presidente do Conselho de Administração da Fibria. “Aqui, adotamos o conceito de lucro admirado e, por meio de nossas ações ao longo desses cinco anos, conseguimos conquistar reconhecimento e gerar valor às partes interessadas.”

Maquiagem verde

Para a diretora da GRI no Brasil, a principal meta para as corporações é melhorar a comunicação dos relatórios, selos e certificados com os diversos públicos envolvidos. “As empresas estão muito fragmentadas, e a sustentabilidade, seja pela metodologia da GRI ou outras existentes, demandam e forçam que essas paredes sejam derrubadas em favor de uma visão mais integrada”, diz Gláucia Terreo.

Gláucia Terreo, da GRI no Brasil
Gláucia Terreo, da GRI no Brasil

O desastre ambiental em Mariana, em Minas Gerais, causado pelo rompimento de uma barragem da mineradora Samarco, é prova do quanto a sustentabilidade impacta no negócio, na lucratividade e na competividade, analisa Gláucia. “É um tema transversal, mas, na grande maioria, o assunto fica trancado numa área na empresa, como algo segregado. É preciso se adequar à linguagem para engajar as outras áreas.”

Buscar certificados de boas práticas apenas para “fazer marketing” não vale a pena, na opinião de Rodolfo Witzig Guttilla, co-fundador da Cause, B-Corp brasileira que trabalha como consultora e agência de defesa de interesses púbicos. “A sociedade tem mais informação e as pessoas sabem quais são as empresas que trabalham fora dos limites.”

A prática de “greenwashing” é uma armadilha, dizem os especialistas. A palavra inglesa, que significa “lavagem verde”, refere-se à ação de “maquiar” produtos e práticas para que pareçam ecologicamente corretos e sustentáveis, e depois divulgar o trabalho mediante técnicas de marketing e relações públicas. “Toda comunicação precisa ter uma sustentação interna”, diz a diretora da GRI. “Ajudamos a organizar a casa para comunicar sobre sustentabilidade de maneira correta, em todas as dimensões. Mesmo assim, e infelizmente, ainda há muita gente usando a estrutura para greenwashing. É uma perda de tempo e dinheiro, porque os stakeholders estão cada vez mais informados e nenhum dos benefícios possíveis serão usufruídos.”

Os seis passos rumo ao céu da sustentabilidade

Um guia para obter certificados e melhorar a posição das empresas com práticas ecológicas.

As entidades e organizações internacionais são rigorosas em conceder selos e certificados de sustentabilidade. Pleitear o selo do Sistema B requer seis passos.

  1. É necessário preencher um questionário de avaliação de impacto disponível no site da entidade (www.sistemab.org). São mais de 70 versões diferentes do texto, de acordo com tamanho, setor e localização da empresa – que deve ter pelo menos 12 meses de operação. São 160 perguntas relacionadas à várias áreas, como governança (transparência, ética etc.); práticas com a comunidade, meio ambiente e funcionários; e modelo de negócio. A pontuação máxima é 200.
  2. Se a solicitante tiver mais de 80 pontos, segue para a avaliação por telefone, com um time multilíngue apto a atender empresas de diversos países.
  3. A documentação de apoio deve ser entregue.
  4. A empresa assina um termo onde se explicam seus direitos e deveres como B-Corp. Já está apta a ser certificada.
  5. É preciso modificar os estatutos, considerando os trabalhadores, a comunidade e o meio-ambiente de forma vinculativa na tomada de decisões. “A B-Corp tem o comprometimento dos acionistas, que se responsabilizam em gerar valor para a cadeia”, afirma Julia Maggion, diretora executiva do Sistema B no Brasil.
  6. Pague a taxa anual de certificação de acordo com o faturamento da firma. “Para até R$ 1 milhão de faturamento anual, o valor é de 500 dólares por ano. Mais de R$ 1 bilhão, são 50 mil dólares”, conta Julia.

A cada dois anos é obrigatório fazer o processo de recertificação, e as empresa precisam evoluir na pontuação para conseguir o selo. O processo desconta 10% dos pontos se a companhia tiver a mesma pontuação do último certificado. “Já tivemos no Brasil empresas que não conseguiram a recertificação por mudança na gestão ou venda”, diz a diretora.

Relatório e “pegada”

Para fazer o relatório GRI, a empresa precisa baixar no site da entidade (www.globalreporting.org) duas publicações, o G4 e o Guia de Implementação do G4. Para Gláucia Térreo, diretora da GRI no Brasil, uma dica é formar uma “governança para o relato” na empresa, um comitê multidisciplinar que garanta que o processo envolva todas as áreas, inclusive a alta gestão. “Esse comitê deve definir com clareza quais o propósito da companhia com esse processo, uma vez que ele demanda tempo e investimento de recursos”, ensina.

É importante que o comitê estude os 10 princípios para relatórios da GRI. São eles: Contexto de Sustentabilidade, Materialidade, Inclusão de Stakeholders e Completude (que ajudarão a definir o que é importante para a empresa no que se refere à sustentabilidade); e Exatidão, Equilíbrio, Clareza, Comparabilidade, Tempestividade e Confiabilidade (para ajudar na elaboração de um documento consistente).

Cada princípio tem um conjunto de perguntas-testes que podem nortear o processo de aplicação do tema. Na próxima etapa, a companhia define uma longa lista de temas possíveis, denominados “relevantes”. Algumas perguntas e orientações podem auxiliar no processo (veja o quadro). Nesta etapa, as empresas descobrem que muitos riscos (e oportunidades) compõem a cadeia de fornecimento – riscos relacionados a direitos humanos e trabalhistas, ambientais, corrupção, e que podem acarretar sérios problemas de reputação e perda de valor de mercado.

A etapa seguinte resultará nos temas materiais, que devem ser transformados ou inseridos no processo de gestão da empresa – para gerenciamento de riscos, inovação, potencialização de oportunidades etc. “O erro mais comum que as empresas têm cometido é fazer todo este procedimento só para o relatório. O relato é importante, é uma parte visível de todo esse trabalho, mas ele deve ser apenas um ponto alto de todo esse processo.”

A rede americana Global Footprint Network desenvolve e aplica uma métrica conhecida como “pegada ecológica”, que avalia o impacto humano exercido sobre os recursos naturais e situa os níveis de consumo dentro dos limites ecológicos do planeta. A medida pode ser calculada para pessoas, cidades, países e empresas. Curitiba (PR) é uma das cidades que calculou sua “pegada ecológica”, convertendo a quantidade de matérias-primas utilizadas, ou o dióxido de carbono emitido, na quantidade de solos e recursos hídricos bioprodutivos necessários para manter esses recursos (ou armazenar o lixo gerado). A partir do cálculo, foram sugeridas medidas para melhorar os índices de sustentabilidade, como implantação de sistema de transporte público inovador e manutenção de áreas verdes e parques. Empresas também podem receber uma “pegada ecológica” contatando a entidade pelo site www.footprintnetwork.org.

 

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