04 de novembro de 2020

Literatura para quê?

A literatura pode apoiar a construção da cultura interna de uma organização?

Na condição de executivo de empresas de bens de consumo, conduzi processos de comunicação organizacional com múltiplos stakeholders. Públicos diversos, situados em extratos sociais variados, com distintas visões de mundo.

Tendo em vista minha formação, também editei veículos de comunicação para colaboradores e funcionários das organizações por onde passei. Em um voo meio às cegas, como muitos de minha geração, transitei do meio impresso para a comunicação em redes sociais – tema de um próximo artigo. Como não se trata de texto acadêmico (para o qual já tive inclinação, mas que já não me interessa) e nem memorialista (acho chato), irei arriscar uma resposta heurística à pergunta enunciada no início deste artiguinho: A literatura pode apoiar a construção da cultura interna de uma organização?

Em “Literatura para quê?”, o poeta e crítico Carlos Felipe Moisés diz que a literatura é “um inesgotável repositório de bússolas e astrolábios, cartas de navegação, portulanos, roteiros e derrotas, à espera de serem manuseados por alguém sequioso de aventura”. E completa: “Não sei disfarçar a atração que sinto pela ideia do leitor viajante (…) O que para mim vale, acima de tudo, é o prazer da leitura. Esforço que se alimenta da imaginação alheia, a leitura crítica não deve abrir mão da liberdade imaginativa.”

A partir desse ponto, seguirei com as bússolas, os astrolábios e as cartas de navegação de meu amigo e querido mestre. Como sabemos, as organizações precisam criar narrativas para engajar suas equipes e públicos de relacionamento, de forma a implementar suas estratégias – e apontar o Norte. Nessa “navegação de cabotagem”, cito dois casos em que adotei a literatura para reforçar a cultura organizacional de empresas exemplares.

Nos anos 1990, como executivo da Brasmotor, editei a “Revista Brasmotor”. À época, a companhia era a holding de um conjunto de marcas e empresas que incluíam Brastemp, Consul e Semer (depois agrupadas na Multibrás Eletrodomésticos) e Embraco, dentre as principais. A revista impressa, era distribuída para cerca de 20 mil colaboradores do grupo – que, em 1998, foi adquirido pela Whirlpool Corporation (da qual, também, fui executivo).

Uma das páginas da publicação, era dedicada à crônica do tempo presente e a especulação sobre o futuro. Dentre os colaboradores, constavam autores de renome da literatura e do pensamento sociológico, como Ignácio de Loyola Brandão, Jorge Caldeira, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Rachel de Queiroz, Roberto DaMatta, Ruth Cardoso e Ruy Castro. E cartunistas como Ique, Maurício de Souza, Spacca e Ziraldo. Em 1999, os artigos e ilustrações foram editados em um livrinho intitulado “A construção do futuro, crônicas da Revista Brasmotor”. Organizado por Carlos Felipe Moisés, sob minha coordenação editorial, a publicação foi distribuída para os 20 mil colaboradores do grupo – certamente uma das maiores tiragens editoriais, à época.

A partir dos anos 2000, conduzindo a área de Assuntos Corporativos da Natura Cosméticos, passei a editar o jornal “Ser Natura Colaborador”, veículo impresso destinado aos colaboradores da empresa. Reconhecendo que “o prazer da leitura alimenta a imaginação”, dedicamos uma página para cronistas e poetas, como Alice Ruiz, Anita Roddick, Carlos Heitor Cony, José Roberto Torero, Lya Luft, Marcelo Rubens Paiva, Marina Colasanti, Reinaldo Moraes e Rubem Alves – gente de escola.

Nessa espetacular jornada, sempre contei com o apoio e o entusiasmo das lideranças das empresas por onde transitei, publicando artigos tão sensíveis, quanto comoventes, como “A quaresmeira”, de Renata Pallotini; “A flor do futuro”, de Nélida Piñon e “Janela para os pirilampos”, de Lourenço Diaféria.

Ensimesmado em sua rotina sem graça, o executivo inculto (que, certamente, não chegaria ao terceiro parágrafo deste artiguinho), poderia questionar: “Quaresmeira, flor e pirilampos? Não atingiremos o resultado comercial com esse papo furado”. Desprovida de liberdade imaginativa, essa turma não saberia engajar suas equipes em torno de um sentido transcendente e, muito menos, experimentar a imensa aventura da existência humana, e a transitoriedade da vida. Uma vida com propósito e significado, seja no plano pessoal, como organizacional.

Afinal, é a aventura que move a humanidade em busca de um propósito, seja ele particular ou coletivo. A liberdade imaginativa, por sua vez, ajuda a construir cultura. A literatura, é a ponte.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Rodolfo Witzig Guttilla

Antropólogo, jornalista e poeta, Rodolfo Witzig Guttilla é sócio-fundador da CAUSE. Conduziu as áreas de Assuntos Corporativos da Whirlpool e da Natura. É autor de “amorhumorumor, haikais & senryus” (Companhia das Letras, 2020), entre outros.

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