Como lidar com as narrativas que trazem visões dissonantes em relação à cultura organizacional?
Há algumas semanas, lá no meu perfil no Linkedin, publiquei uma enquete com temas diversos sobre cultura e comunicação interna (saiba mais) a serem votados. O tópico mais votado direcionaria o enfoque do meu próximo artigo para o portal Aberje.
Cá estou, então, com o desafio de trazer algumas ideias sobre como lidar com a dissonância e a disfuncionalidade no contexto das narrativas e da prática da cultura organizacional. Humildemente, coloco algumas premissas importantes a serem consideradas nesta leitura:
– trata-se de uma visão parcial e empírica sobre o assunto, com a clareza de que ele precisa ser amplamente discutido e praticado de forma a trazer evidências quanto à efetividade da abordagem aqui proposta;
– é um ensaio de ideias a partir de um enquadramento de mundo complexo, no qual as transformações contínuas e profundas, dentro e fora das organizações, constituem o contexto que se apresenta e que é tido como base destas reflexões;
– um dos caminhos aqui propostos é dar lugar à dissonância. Dessa forma, as críticas construtivas do leitor sobre a proposta aqui contida também são bem vindas. Elas sedimentam a jornada que precisamos trilhar juntos para um tema tão complexo, num cenário ainda mais complexo.
– trago um olhar para a comunicação e cultura a partir de outros saberes, mantendo o compromisso que assumi no meu artigo de estreia no Portal Aberje onde falei sobre o quanto a correlação entre diferentes campos do conhecimento enriquece nosso olhar, ampliando também nosso alcance e prática.
Boa leitura!
Como ponto de partida, algumas noções de conserva cultural, disfuncionalidade e dissonância
No início da minha carreira, aprendi com uma colega querida uma frase sobre cultura organizacional que nunca mais esqueci: “Depois de um tempo, a gente vira picles”. Sonora e fácil de memorizar, essa frase conta que o picles é o colaborador e a conserva onde o picles se ambienta é a cultura organizacional. Ou seja, o tempo vai passando, a gente “vira” picles na conserva e começa a não identificar – de forma intencional e consciente – as disfuncionalidades e dissonâncias existentes na cultura organizacional na qual estamos inseridos.
Sedimentei essa crença do picles da conserva na maneira como percebo a cultura nas organizações e, recentemente, tive uma agradável surpresa quando li que um autor chamado Jacob Levy Moreno, num contexto mais geral, realmente falou de “conservas culturais”, ou seja, da “cultura em lata de conserva que a gente vai consumindo”. Fui pesquisar mais e encontrei uma interpretação interessante sobre este conceito, de um outro autor, onde ele diz que “as conservas culturais tudo estancavam, não eram possíveis a fluidez, as transformações, o mundo aberto, as alternâncias libertadoras”. É a partir deste lugar de possível estagnação que lançarei meu olhar sobre cultura organizacional neste artigo.
Ainda ancorando conceitos, no livro “Normose, a patologia da normalidade”, encontrei esta perspectiva teórica que também trago aqui como referência para contextualizar as disfuncionalidades dentro das organizações. De forma bastante resumida, normose é um conceito psicossociológico que aborda a patologia da normalidade, um conjunto de hábitos, valores, estereótipos e comportamentos considerados normais pela maioria e que, na realidade, são patogênicos, disfuncionais e levam ao sofrimento.
Quando se assume que determinados comportamentos são adotados pela maioria tem-se aí uma “maneira disfarçada de manipular as opiniões”. Ou seja, se a maioria se comporta daquela forma, logo, este comportamento é o mais aceitável e, portanto, não é questionado. Isso revela uma certa alienação do sujeito que segue o exemplo da maioria, sem buscar uma consciência mais aprofundada quanto à sua maneira de ser, viver, estar no mundo. A normose tem como característica comportamentos que se apresentam de forma inconsciente e automática, sendo que este automatismo pode vir a se dissolver a partir de uma tomada de consciência a respeito do comportamento disfuncional.
Já sobre a dissonância, vou citar um exemplo para ilustrar: comunica-se que é parte da cultura de uma organização o comportamento de assumir riscos em busca de inovação, mas, na prática, quando as pessoas erram em busca do novo, elas são punidas ou rotuladas de alguma forma. Isso é uma dissonância entre a narrativa, aquilo que é comunicado, e prática do dia a dia. Esse exemplo também nos ajuda a compreender alguns comportamentos disfuncionais que podem surgir a partir da situação em questão: punir por erros que são legítimos, atuar sob a perspectiva do comando e controle, medo de errar, dizer que um comportamento é desejável quando, na prática, ele não é acolhido como parte do processo.
Trago estes conceitos – conserva cultura, disfuncional e dissonante – como ponto de partida para melhor compreensão dessa análise. Como profissionais que constroem narrativas sobre a cultura nas organizações, por mais apaixonados que sejamos pela empresa, pela marca empregadora, pela cultura, é importante manter a visão crítica, ampla e o discernimento a fim de identificar aquilo que não é funcional na cultura organizacional, ainda que isso seja aceito e tido como “normal” pela suposta maioria. Também é nosso papel ter consciência quanto às dissonâncias entre o que a cultura estabelece como narrativa e o que as pessoas vivenciam na prática.
E, a partir dessa tomada de consciência, talvez nosso maior desafio seja impulsionar espaços de diálogo e mecanismos de escuta para que os empregados também possam trazer, com naturalidade, sem medo e de forma genuína, seus sentimentos e percepções sobre o que é disfuncional e dissonante na cultura. E claro, de forma coordenada e transversal, somos corresponsáveis por empreender tratativas efetivas – e afetivas – ao que é disfuncional e dissonante nas organizações, impulsionando ações estruturadas que contribuam para um ambiente de trabalho cada vez mais íntegro, coerente e humanizado.
Novos tempos demandam um olhar permanente e ampliado para a cultura
A instabilidade dentro e fora das organizações é uma realidade. Precisamos reagir com sabedoria e prontidão ao que acontece em nosso entorno e compreender que os desafios a partir de um contexto de inúmeras mudanças e incertezas demandarão um exercício de repensar a cultura organizacional de forma contínua, num movimento estruturado e intencional, a fim de analisar se ela corresponde e suporta o enfrentamento do contexto vivido ou se há necessidade de ressignificar comportamentos, valores e formas de trabalhar, a fim de estarmos não apenas preparados para os desafios concretos, mas, principalmente, para avaliar de forma diligente se estamos adotando práticas que contribuam para a saúde organizacional e dos sujeitos que dela fazem parte, a partir de comportamentos e experiências funcionais.
Além do contexto em constante mudança, é importante lembrar que somos cada vez mais chamados a fortalecer culturas participativas e inclusivas, onde as pessoas tenham vez, protagonismo, na qual sintam que seus valores estão ali representados. Assim, é fundamental que as pessoas tenham voz e influência nessa construção cultural. Quando um grupo reduzido, homogêneo e pouco diverso de pessoas define, desenha e impõe o que é mais relevante numa cultura, temos como provável consequência que essa composição não reflita os anseios do coletivo o que, certamente, não resultará numa construção que represente o todo, que seja colaborativa, genuína e que alcance e ecoe de forma verdadeira, fazendo sentido para os envolvidos.
A cultura é alicerce e sustentação para execução da estratégia organizacional, mas é também arena de diálogo, de pertencimento, de realização e de experiências do sujeito e do coletivo dentro da organização. Assim, pelas questões anteriormente expostas, parece ser cada vez mais relevante empreender uma construção cultural que represente o todo, buscando abarcar também as visões dissonantes a partir de um constante exercício de olhar de forma profunda e permanente a cultura, a partir de uma abordagem diversa, inclusiva e ampliada. Caso contrário, rapidamente a cultura poderá se tornar “estancada” e incongruente em relação à sua função original.
Caminho do meio: um lugar para abarcar as dissonâncias
O sujeito dissonante vai continuar existindo, sempre. E que bom, pois, muitas vezes, ele é âncora para que possamos rever, refletir e “não virar picles”, não entrar no automático, como falamos no começo. Para que ele tenha espaço de escuta, não seja isolado e desencorajado em seu pensamento crítico é preciso abertura, flexibilidade e mecanismos de escuta estruturados com intenção legítima. E, claro, boas práticas de convivência estabelecidas de modo que a contribuição do dissonante se dê a partir de um lugar construtivo, propositivo, dialógico, com foco em buscar harmonia e compreensão entre as partes envolvidas.
Ainda percebo as organizações um tanto refratárias às contribuições que vem deste lugar da dissonância. Ao estereotipar o dissonante como o “do contra”, o “controverso”, o “desengajado” talvez estejamos deixando de acolher essa subjetividade com maior neutralidade, sem julgamentos, com real atenção aos elementos relevantes no tão importante processo de dedicar um olhar permanente à cultura. O dissonante pode trazer os contrapontos, com um olhar autêntico em relação às dissonâncias e disfuncionalidades existentes no contexto. Por meio dessas conversações internas, temos como oportunidade arejar a cultura a partir de novas e necessárias perspectivas que possam contribuir para a evolução organizacional.
Harmonizar visões conflituosas é o que temos tentado fazer, desde sempre, enquanto humanidade. Temos como paradigma buscar o caminho do consenso, da uniformidade, da concordância da maioria ou da totalidade de membros de uma coletividade. Essa busca pode engessar este exercício e deteriorar, gradativamente, o lugar da dissonância, da diferença no ser, pensar, fazer e sentir que tem a sua importância e riqueza.
Como alternativa a este paradigma, podemos nos propor a trilhar o caminho do meio que é o exercício de ouvir novas formas de ser e fazer sem julgar, sem duvidar, com discernimento e a abertura para investigar tais possibilidades. Essa abordagem me faz pensar numa postura que valoriza a dualidade que, ao contrário do dualismo, pressupõe lidar com a complexidade, com a articulação de muitas partes que se relacionam, dando origem a um “sistema dinâmico sempre aberto a novas sínteses”.
Como podemos ocupar um papel relevante nesta trilha
Enquanto profissionais voltados às narrativas e práticas de cultura organizacional, estamos sempre às voltas com as nossas estratégias de transformação ou sustentação cultural, previstas em nossas planilhas e power points. Enquanto isso, a cultura está, queiramos ou não, organicamente, se reinventando, se ressignificando, simplesmente fluindo, na sala – ops – no zoom ao lado.
Tomar consciência de que a cultura é viva e uma construção coletiva e constante é fundamental para que possamos assumir um lugar mais consciente no processo de lançar um olhar permanente e atento à cultura. Neste sentido, devemos nos preparar para dedicar tempo, energia e empreender habilidades socioemocionais das mais diversas a fim de conscientizar as lideranças quanto à importância deste olhar à cultura em toda sua complexidade.
Atuar como facilitador do diálogo aberto e imprimir passos firmes ao trilhar o caminho do meio, pautado no que é dissonante/relevante para os diversos grupos que convivem numa organização, deve ser algo prioritário em nossas agendas. Fundamental preparar e apoiar a liderança para que desenvolvam e coloquem em prática as habilidades e comportamentos desejáveis a fim de que possam criar, com autonomia e consistência, estes espaços e rituais genuínos de escuta, diálogo, de colaboração e construção conjunta. É também nosso papel buscar, com legitimidade e coragem, articular e empreender iniciativas que tratem o que for se mostrando disfuncional e dissonante ao longo da jornada.
Cada organização pode estar vivendo um estágio diferente em relação ao exercício de empreender a cultura organizacional: construção, transformação e conservação. Nosso desafio, afinal, é participar ativamente de cada um destes momentos, assegurando que a escuta do que é dissonante e disfuncional tenha espaço garantido e possa revitalizar e retroalimentar a cultura, de forma intencional, regular e estruturada, porque parece ser isso que os novos tempos pedem.
Ao ter a cultura como um eixo firme, mas flexível e em constante movimento, a humanização nas organizações pode ser, finalmente, um caminho sem volta, tendo como norteador a busca de um “sistema dinâmico sempre aberto a novas sínteses”, novas formas de ser, novas formas de fazer, onde sejam possíveis “a fluidez, as transformações, o mundo aberto, as alternâncias libertadoras”.
REFERÊNCIAS
Weil, Pierre – Normose: a patologia da normalidade / Pierre Weil, Jean-Yves Leloup, Roberto Crema. 5 ed – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014
Boff, Leonardo – A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana / Leonardo Boff. 47. ed – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014
Um caminho de investigação aberta: Conversa com Elizabeth Mattis Namgyel https://bodisatva.com.br/elizabeth-mattis-namgyel/
Merengue, Devanir – Corpos tatuados, relações voláteis: sentidos contemporâneos para o conceito de conserva cultural Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo, 2009: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932009000100008
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