24 de junho de 2020

Precisamos falar sobre política dentro das organizações

Há anos vivemos uma polarização política no país que tem criado um ambiente hostil entre pessoas de visões diferentes. Familiares que cortaram laços, amigos que deixaram de se ver, vizinhos que fazem uma guerra fria de gritos no prédio. As empresas, espaço parte da sociedade, não ficariam à parte disso.

Esse tema complexo vêm sendo deixado de lado por muitas organizações, fazendo com que muitos desentendimentos, embates e até demissões aconteçam aos olhos de todos, sem que líderes e gestores saibam como agir. Exemplos não faltam: desde a trabalhadora demitida em 1977 de uma estatal durante a ditadura, que descobriu após a Lei da Anistia de 2012 que a atitude foi justificada por sua participação em protestos, até o caso do programador Emerson Osasco, demitido esse mês de uma multinacional de tecnologia por ter participado de protestos a favor da democracia. Em 2016, uma pesquisa da Associação Americana de Psicologia mostrou que 28% dos trabalhadores de até 34 anos estavam estressados por debates políticos durante o expediente e que cerca de 1/5 dos homens já tiveram em brigas políticas com colegas de trabalho.

A complexidade do assunto tem como cerne o costume de evitar conflitos que nós brasileiros temos. Quantas gerações não reproduziram o bordão “política e religião não se discutem”? Seguindo esse mantra, a organização perde a mediação da narrativa e acaba sendo refém do que é falado nos corredores e dos posicionamentos individuais de seus líderes e colaboradores mais influentes. O velho mantra “quem não se posiciona é posicionado” vale para a questão política também, e as ondas de reputações empresariais aliadas ao posicionamento de um líder ou sócio estão mostrando cada vez mais como isso acontece.

Voltando ao caso mais recente, da multinacional de tecnologia, o debate ganhou ainda visibilidade pelo fato da empresa ter selo de apoio a diversidade em seu site e se posicionar a favor da mesma publicamente, gerando o questionamento: se é a favor da diversidade pode demitir por conta de posicionamento político? Se diversidade é abraçar o diverso, precisamos refletir se permitir um debate político interno controlado, com regras bem estabelecidas, pode ser mais benéfico do que deixa-lo rolando de forma descontrolada nos cafés e corredores.

É importante lembrar também do papel cívico que cada organização tem. Assim como a organização tem papel de educar sobre diversidade étnico-racial, de gênero, de identidade e orientação sexual, pode ser que ela tenha que assumir esse papel no esclarecimento de como um debate político saudável pode ser feito, de forma que não ofenda, diminua e nem agrida o outro. Também, da mesma forma que organizações devem impor limites, como as políticas anti-discriminação, elas podem impor limites, como não permitir que discursos anticonstitucionais ocorram em seu ambiente. Isso é ser coerente com o seu papel na sociedade, é ser uma empresa socialmente responsável. Por fim, vale-se lembrar que caso algum trabalhador se sinta lesado por conta do seu posicionamento político, ele pode processar a empresa, havendo já jurisprudência para reintegração e danos morais.

A pergunta que pode surgir é: ok, mas como fazer isso? Dentro desse cenário, as empresas precisam fazer exatamente o que fazem para desenvolver outros pontos relacionados a diversidade: refletir, escutar, desenvolver, formalizar, treinar e sensibilizar. O primeiro passo é refletir sobre como é a sua relação com diversidade, a empresa deseja ter pontos de vista diferentes incluindo em relação a esse ponto? O que pode ser benéfico em ter pessoas com visões de mundo diferentes no viés político? O segundo passo é escutar seus stakeholders para entender o que eles acham sobre o assunto, levando em conta a cultura e posicionamento estratégico da empresa. Depois disso, desenvolver um plano de ação de como agir em relação a diversidade política, finalizando com a formalização de políticas (se necessário), treinamentos de gestores e sensibilização da equipe.

As organizações não precisam ter uma posição política, uma empresa de direita ou de esquerda, progressiva ou conservadora. Mas elas precisam entender que esse debate existe internamente, e que definir as regras desse debate pode ser a melhor forma de manter o engajamento interno, o alinhamento à sua cultura e a coerência frente ao seu propósito e sua marca.

Os artigos aqui apresentados não necessariamente refletem a opinião da Aberje e seu conteúdo é de exclusiva responsabilidade do autor.

Jean Soldatelli

Co-fundador da Santo Caos, a primeira consultoria de engajamento do Brasil, é formado em Comunicação Social pela USP, e tem conhecimento em áreas comportamentais, como Ciência da Felicidade e análise de dados. Diagnosticou o engajamento de mais de 60 mil trabalhadores de diversos setores e desenvolveu ações de engajamento para mais de 500 mil colaboradores de seus clientes. Além de ser consultor de engajamento de grandes empresas como RD, Eldorado Celulose, Sabesp e Grupo Águia Branca, é responsável por estudos sobre diversidade, voluntariado corporativo, terceirização e migué.

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